“Paddleton” (2019) já começa deixando claro ao espectador que, embora seja uma comédia, é uma comédia que não faz graça de tudo, apenas do mais importante. Mike, interpretado por Mark Duplass, acaba de receber a pior notícia de sua vida, apoiado pelo melhor amigo Andy, de Ray Romano, que fica tão alarmado quanto ele, embora tente disfarçar. O que os afeta é a quase certa possibilidade de que o diagnóstico do médico que consultaram seja mesmo a catástrofe que temem e que Mike sofra de um câncer de estômago em estágio avançado. O médico se comove com a dedicação extrema de Andy a Mike, um zelo que nem todo marido tem em relação à sua esposa, ou vice-versa, mas não há aqui nenhuma insinuação nesse sentido. A verdade é que os dois só tiveram um ao outro na vida, nunca puderam contar com o interesse das respectivas famílias — se é que as têm — e aprenderam logo a conviver com a dificuldade em construir laços sociais, exacerbada graças a essa bolha de amor fraterno mútuo que inflaram em torno de suas figuras melancólicas. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bobos e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado por eles. E essa vidinha um tanto monótona, mas tão cheia de certezas, poderia continuar assim para sempre, não fosse a rasteira que o destino lhes deu.
O filme de Alexandre Lehmann, roteirizado por ele e por Duplass, fecha-se tão hermeticamente no que Mike e Andy representam um para o outro que não se permite qualquer interpretação jocosa ou mal-intencionada e qualquer outro personagem é visto como um estranho, e mais, como dispensável. O único terceiro elemento possível em “Paddleton” é a própria memória de um e outro sobre o que viveram, um ambiente indefinido que a iminência da morte do primeiro ameaça desgastar e quiçá extinguir. A decisão radical de Mike, personificado por Duplass com uma maturidade emocionante, a fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, suscita discussões que perpassam dilemas éticos de parte a parte, tanto para o doente como para seu amigo, resolvido a apoiar sua forma de lidar com o problema desde o início. A mera tentativa de abordar a questão sob prismas sociológicos convencionais se desfaz, uma vez que esse estranho casal, para lembrar a comédia de mesmo nome de Gene Saks lançada em 1968, é capaz de subverter qualquer clichê, estenda-se a corda para o lado do humor ou da tragédia. Mike considera muito natural encerrar seu ciclo na Terra da maneira como se assiste em “Paddleton”, convicto de que essa é uma decisão que cabe a ele e a mais ninguém, por maior que seja o amor por Andy. É um exercício cênico de fôlego para os protagonistas, que transcendem a hesitação, o medo e mesmo a conformidade com o que de fato se passa; o espectador, por sua vez, tenta se equilibrar em meio à riqueza semântica do enredo, ora julgando o personagem de Duplass como o grande vilão da história, por matar-se com seu egoísmo e fazer do amigo um mutilado espiritual, ora atribuindo a culpa do desfecho infeliz a Andy, que em nome da própria amizade com Mike, sempre pautada pelo respeito, compreensão e empatia, num primeiro momento apenas tolera o modo como o doente lida com sua nova condição, tornando-se um entusiasta fervoroso da ideia pouco depois, concordando em partir com ele numa viagem, a derradeira, em que as novas experiências que irão desfrutar têm o caráter do absurdo que lhes assalta na forma do pior acontecimento que poderiam viver, a cada dia mais próximo.
Em “Paddleton”, os personagens centrais travam uma saudável batalha para definir qual dos dois intérpretes se sai melhor, e para a felicidade do público, esse jogo termina empatado. Romano, com seu distanciamento algo brechtiano, como se Andy preferisse não ceder à autonomia do amigo, dividido entre não criar mais complicações num cenário já repleto de tanta conflagração emocional e deixar fluir o grande sofrimento que se apodera dele, cria um personagem memorável. Seu temperamento entre ranzinza e desbragadamente amoroso, à maneira não de um irmão, mas de pai, une força e susceptibilidade na medida certa, exaltando a tristeza corajosamente, mas fazendo a leveza da relação com Mike sobressair. O clima mais adequado para uma despedida tão marcante.
Ao se aproximar do fim, o filme consegue a proeza de emocionar ainda mais ao explorar a emoção até a última gota, mostrando Mike e Andy declarando seu amor da maneira mais explícita que conseguem, algo que certamente nunca haviam feito. Alexandre Lehmann faz de “Paddleton” um lembrete óbvio, da maneira mais doce, de que a vida é efêmera e incerta e que, sendo assim, é melhor não deixar para depois e fazer com que as pessoas de quem gostamos saibam com toda a clareza, sem nos preocuparmos com julgamentos de qualquer tipo. Isso, sim, é jogar para vencer.
Filme: Paddleton
Direção: Alexandre Lehmann
Ano: 2019
Gênero: Drama/Comédia
Nota: 10