Que as redes sociais vieram para ficar ninguém se atreve a desdizer, bem como é inegável o potencial desse instrumento — talvez o que melhor resume este louco século 21 — quanto a fomentar mudanças na comunicação, nos costumes, na economia, na cultura e, por óbvio, na política, para o bem e para o mal. “Rumores”, o filme do indiano Sudhir Mishra, passa por todas essas áreas da vida dos homens, fazendo com que todas acabem por pagar tributo às ligações pouco republicanas entre empresários, autoridades e aqueles que deveriam representar o povo junto ao poder público, cada vez mais apodrecido, tomado por gente que aprende rápido a locupletar-se com o que é de todos. Aos poucos e a custo, a Índia vai dobrando as imposições culturais que vão surgindo ninguém sabe exatamente como, mas que não tardam a se cristalizar e na carne e no espírito de seu povo, ganhando uma aura de verdade absoluta e inconteste que não pode ser desafiada jamais, sob pena de maldições para além deste plano. Com o filme, Mishra prova que seu país, verdadeiro continente dentro da Ásia, vale-se do cinema a fim de apresentar ao mundo suas chagas, a um só tempo exóticas, quase absurdas, e ainda assim comuns a quase todas as nações ao redor do mundo, corpo estranho com que as democracias têm de lidar ad aeternum. Em Bollywood parece que nunca há de faltar espaço para que tramas famosas no Ocidente ganhem as cores, a sonoridade, o ritmo da Índia, mesmo que, no fundo, se esteja a falar de assuntos muito conhecidos de quem quer que seja.
O roteiro, de Mishra, Nisarg Mehta e Shiva Shankar Bajpai, abusa das imagens que só a Índia tem, e no prólogo, um nômade atravessando uma tempestade de areia sobre seu camelo é ultrapassado por uma Range Rover vermelha. O pleito estadual se aproxima e, por coincidência ou não, as restrições à venda e transporte de gado ficam mais austeras. Os bovinos são criaturas sagradas para os indianos, sobretudo para os hinduístas, mas nada os impede de exportar sua carne, um dos alicerces da economia do país, responsável por operações que movimentam em torno de cinco bilhões de dólares por ano. Não obstante apenas uma nota à margem, o diretor e seus corroteiristas elaboram informações dessa natureza o mais sutilmente que conseguem, incluindo aos poucos as figuras que hão de compor a trama principal. Rahab Ahmed, o publicitário vivido por Nawazuddin Siddiqui, mantém uma relação apenas cordial com Nivedita, a Nivi, de Bhumi Pednekar, a filha que Gyaan Singh imagina querer dar continuidade ao seu legado de arbítrio e malversação do dinheiro público. Singh, que todos conhecem por Hukum, no fundo não a conhece, e essa ambivalência moral do personagem, uma menção clara a um político de Madhya Pradesh, estado no centro da Índia, é mais uma das flechas que o diretor atira a esmo, mas que chegam ao alvo. Nivi planeja sair de cena e cuidar da própria vida longe de Madhya Pradesh, abandonando o noivo, Vicky, de Sumeet Vyas, que, na verdade, está mesmo interessado é no que essa futura união pode trazer-lhe de benefícios nas eleições. A desordem que se instala no comício de Vicky, encomendada a seu mando pelo jagunço Chandan, papel de Sharib Hashmi, seria a oportunidade perfeita, mas uma reviravolta, conduzida de forma meio atabalhoada, faz com que a desonra dos Singh recaia sobre o personagem de Siddiqui, que, naturalmente, não tem culpa das tragédias íntimas que eles mesmos perseguem.
Os boatos de “Rumores” nem parecem assim tão escandalosos a ocidentais — e esse é um indício espontâneo da degeneração que nos envenena. Os indianos costumam repetir que a maledicência só não fere quem a dissemina. Em certas plagas abaixo do Equador, o ludíbrio garante projetos de mando para além do que a saúde das instituições aguenta; depois de algum tempo, todos nos cansamos e ninguém mais importa. Mas os arranjos perduram.
Filme: Rumores
Direção: Sudhir Mishra
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 8/10