Bula de Livro: O Homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann

Bula de Livro: O Homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann

Li “O Homem da Areia”, de E.T.A. Hoffmann, e gostei. Na verdade, é um pequeno tratado sobre a loucura e, por isso, extremamente importante. Não é o homem da areia o vilão, como poderiam pensar os incautos, mas a nossa imaginação, capitaneada por um cérebro com distorções bioquímicas desconhecidas na época do autor, mas essenciais para a ficção e para o estudo observacional de comportamentos estranhos e sombrios.

Nathanael, desde muito cedo, não lidou bem com os mitos e as crenças impostas para disciplinar, como aquelas que nossos pais contavam: “O bicho-papão vem te pegar se não se comportar”. Para Nathanael, o famigerado homem da areia, que retira os olhos e os leva consigo “à lua crescente para alimentar suas criancinhas, que estão no ninho e têm bicos curvos, como de coruja, para bicar os olhos das criancinhas travessas”, é um ser real, que ele acredita visitar sua casa à noite.

Hoffmann é eficiente ao apresentar personagens tridimensionais que possuem características distintas e representam extremos antagônicos do comportamento humano. Numa época infestada de ideias imaturas sobre ciências e tecnológica, sobre a interface misticismo e racionalismo, onde a alquimia e a confecção de autômatos pareciam grandes eventos ligados à metafisica da criação e da reprodução, pelo homem, da obra divina, “O Homem de Areia” parece o elogio do estudo profundo e terrível destes elementos e de sua influência nas atitudes e opiniões humanas. Hoffmann cria, em sua obra ímpar, um discurso sobre as algumas das forças conflitantes mais relevantes do universo. Amor versus ódio, poder versus compaixão e ilusão versus realidade. A absoluta clareza do pensamento de Clara, a namorada de Nathanael, e de seu irmão Lothar, são a personificação da racionalidade palpável em que se baseia a ciência. Por outro lado, a afetação e a subjetividade de Nathanael dizem respeito à crença desmedida e à falta de autocrítica aos sentidos cabíveis de falha.

Sobre Clara (ciência, pensamento racional e equilibrado), Nathanael (subjetividade e conclusão baseada no impulso dos sentidos) diz o seguinte: “Em sua alma de gelo não penetra nenhum raio de mistério, que muitas vezes envolve com braços invisíveis o ser humano; ela enxerga apenas a colorida superfície do mundo e se alegra como uma criancinha com o reluzente fruto do ouro cujo interior abriga um veneno mortal”. Nathanael, ainda gostaria que sua mulher fosse a ouvinte perfeita, que nunca discordasse ou que, durante suas apresentações, como a leitura de um poema que ele supõe magnifico, deixasse de bordar ou fazer algo de seu interesse e se dedicasse exclusivamente a aplaudi-lo.

Em tempos de cultura de negação, onde cada um pensa entender mais sobre qualquer assunto do que um especialista, esse “O Homem de Areia” é uma luz no fim do túnel, para olhos que se mantêm intactos, para olhos que não se deixam arrancar.


Livro: O Homem da Areia
Autor: E. T. A. Hoffmann
Tradução: Marcella Marino M. Silva e José Feres Sabino
Páginas: 112 páginas
Editora: Editora Ubu
Nota: 10/10