Tem uma canção antiga do argentino Fito Paes, “Un vestido y un amor”, linda, linda, cantada por Caetano Veloso no maravilhoso Fina Estampa, que diz assim: “hay cosas que te ayudan a vivir”.
Devia ser slogan de tudo o que é bonito neste mundo. Vira e mexe eu penso nela. Tem tanta coisa que ajuda a gente a viver!
Nem todo mundo percebe quando uma beleza nos salva o dia, às vezes nos salva a vida, outras vezes nos empurra para a frente e é por isso que o mundo ainda não acabou. A gente quase não nota, muito menos agradece. Mas elas estão lá, sempre. Há coisas que nos ajudam a viver.
Para mim, música é uma delas. Ouvir música sempre haverá de nos salvar. De todas as formas possíveis, a canção certa no instante preciso nos resgata e nos põe de pé.
Dia desses, tarde da noite, voltando de carro de uma cidade aqui perto onde fui fazer um trabalho, a estrada vazia e triste me deu uma saudade dolorida dos meus três filhos. Saudade de estar mais ao lado deles, sabe? É por eles que eu aceito uma bruta maratona de trabalho. Mas é deles também que a lida diária me arranca e afasta sempre.
Pois lá estava eu, ouvindo música e pensando em João, em Maria, em Hugo, meu power trio. De repente, numa playlist aleatória do Spotify, ouço uma voz baixinha, quase sussurrada, e um violão chiado, com aparência de ter sido gravado na cozinha, numa antiga fita cassete. O cantor tinha um sotaque nordestino e a canção dizia assim:
“Pelo rio sereno
Vai-se a madrugada
Logo será dia no campo estrelado
(…)
Os galos já cantam
Suas alvoradas
Logo será dia nas frias moradas
A primeira luz
Rompe a escuridão
Logo será dia em meu coração…”
Era o que eu precisava ouvir àquela hora. A beleza que havia ali me salvou e isso é tudo. Ouvi de novo, muitas vezes, a viagem toda, pensando comigo que João, meu filho mais velho, ia gostar também, e que seria bom cantá-la para minha filhinha Maria dormir. E que até meu caçula, o Hugo, também podia ouvi-la feito trilha sonora de suas bagunças pela casa.
Pronto. Cumpriam-se ali alguns dos propósitos mais bonitos da música: aproximar as pessoas, rechear as relações humanas de afeto, enfeitar o espírito, melhorar a vida. Ajudar a gente a viver.
A canção se chama “Arraiada”. Pesquisei depois e descobri que ela foi composta pelo alagoano Bruno Berle a partir de um poema que tem o mesmo nome, de autoria do português Pedro Ivo (1842-1906). É uma das doze faixas do disco “No Reino dos Afetos”, lançado pela gravadora britânica Far Out Recordings, segundo álbum de Bruno, esse sujeito que conheci durante uma saudade e que de cara se tornou um dos meus artistas favoritos.
Acho curiosas as notícias sobre as fortunas que se gastam em alta tecnologia para buscar vida fora do nosso planeta. O disco de Bruno Berle deve ter custado uma cerveja de supermercado, se comparado aos orçamentos das expedições espaciais, e me ajudou a encontrar vida dentro de mim mesmo.
A gravação lo-fi (do termo low fidelity, baixa fidelidade) é uma tendência hoje em dia. Tem uma atmosfera antiga, do rádio de madeira das minhas avós, que me faz bem, e carrega consigo o encanto da possibilidade, do menos que pode ser mais, da qualidade que independe dos grandes investimentos financeiros. E isso me faz mais bem ainda.
Cada faixa desse disco acorda em mim um sentimento diferente. Lembranças, saudades, esperanças. E novos ímpetos, novas motivações. O próprio Bruno produziu o trabalho em parceria com outro alagoano, Batata Boy, muito conhecido na cena independente. Uma das canções, “Quero dizer”, foi composta pelos dois. Uma joia popular irresistível que a gente ouve e gosta, amor à primeira ouvida.
Outra faixa, “O nome do meu amor”, é uma declaração amorosa pura e simples, que de amor, de pureza e simplicidade estamos todos precisados. Em outra, uma baladinha toda Clube da Esquina chamada “Sereno”, de Marvin Vieira e Phylipe Nunes Araujo, Bruno canta só nos segundos finais um punhadinho de palavras doces:
“Amar você
é belo azul
é puro infinito
Sereno
Sincero
Amor…”
Precisa mais nada. Passeando por vários estilos musicais que a atmosfera do disco e o gênio de Bruno permitem, abraçam e enriquecem, todas as músicas desse álbum compõem juntas um sopro de esperança e exaltação da vida em toda a sua potência de encontros e desencontros, sonhos e planos, belezas e alegrias, tristezas e recomeços.
“No Reino dos Afetos” é um presente bonito para um Brasil tão carecido de tanta coisa. De saúde, de educação, de trabalho. E de arte. De música feita por gente como Bruno Berle e seus parceiros. Um disco alegre, belo, forte e muito, muito simples. Por isso tão profundo. Como as tantas coisas deste mundo que nos ajudam a viver.