Documentário perturbador da Netflix é um dos filmes mais vistos do mundo na atualidade Divulgação / Netflix

Documentário perturbador da Netflix é um dos filmes mais vistos do mundo na atualidade

Ninguém imagina que uma mulher que deseja tanto ser mãe tenha de sofrer a provação sobre-humana enfrentada por Beata Kowalski, a verdadeira protagonista de “O Mistério de Maya”, o filme de Henry Roosevelt passa de um apuro de saúde à questão tetricamente dramática que sustenta toda a narrativa. A produção de Liz Garbus — duas vezes indicada ao Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem, por “The Farm: Angola, USA” (1998), e “What Happened, Miss Simone?” (2015), além de também ter dirigido o igualmente admirável “Lost Girls — Os Crimes de Long Island” (2020), drama com registros copiosos de assassinatos em série de adolescentes em situação de risco social — tem um quê de transcendente. Admita-se ou não, há um liame a unir os quatro títulos, em mais de um aspecto, o que fica claro na maneira como Roosevelt opta por apresentar os Kowalski, a família polaca-americana que termina por sendo colhida nao por uma, mas por duas das maiores hecatombes que alguém pode experimentar, a primeira pela Maya do título, uma garota de dez anos martirizada por uma doença rara e sem cura, agora sob controle. Quanto à segunda — definitivamente, uma causa perdida —, esta apenas deriva da primeira, mas fundamenta-se sobretudo no cinismo, no despreparo, na arrogância e na insensibilidade de médicos, advogados e juízes, todos no lugar exato a fim de que tudo concorresse para a desdita geral.

Na abertura, Roosevelt ameniza o tom progressivamente melancólico da história central com imagens em contra-plongée das palmeiras de Venice, Flórida, iluminadas pelo sol de fim de inverno que a fotografia de Patrick Ginnetty deixa quase estourar na lente. Em 24 de fevereiro de 2021, enquanto dirige uma imensa caminhonete cabine dupla vermelha, Jack faz um desabafo como se já trouxesse aquele texto preparado há muito. Quando ele finalmente estaciona na garagem da casa confortável em que mora com os filhos, o diretor-roteirista começa um passeio pelo que um dia foi a vida daquele homem comum, um bombeiro aposentado, elencando detalhes do relacionamento com Beata, desde quando se conheceram até o nascimento de Maya, a primeira criança que tiveram juntos. Roosevelt capta nuanças do temperamento de seu entrevistado, e que se vê é impossível desconfiar-se do que Jack sentia pela esposa, certeza que resta meio enfraquecida diante de uma revelação na virada do segundo para o terceiro ato. Nesse intervalo, “O Mistério de Maya” adquire as cores de um épico particular, com o marido de Beata derramando-se em considerações entre românticas e orgulhosas acerca da perseverança de sua mulher, exaltando a força de vontade que a levou a ser uma das melhores alunas do curso de enfermagem, malgrado o inglês claudicante. Ainda nesse segmento, Jack fala também sobre a dificuldade de terem filho, gancho de que o diretor se vale na bem-sucedida intenção de entrar no conflito inicial, naturalmente o mais rico do ponto de vista de um enredo de não-ficção, mas que perde espaço para o que acontece da metade do filme em diante.

O nascimento de Maya é, merecidamente, celebrado como uma bênção, mas ainda em tenra idade, ela manifesta a síndrome da dor regional complexa, uma doença neurológica que incapacita o paciente. É como se, após um trauma, o nervo entendesse que deve seguir levando a mensagem de que o tecido, pele, músculo ou osso, ainda está lesionado, o que causa uma inflamação perene, aguda e extensiva no organismo. Depois de peregrinar por hospitais dos Estados Unidos e uma temporada em Monterrey, nordeste do México, em novembro de 2015, o diagnóstico de Anthony Kirkpatrick, um especialista em SDRC, põe o Johns Hopkins All Children’s Hospital no destino dos Kowalski. E a vida deles mergulha no vazio.

A suspeita de maus-tratos contra Maya, embora Kirkpatrick frisasse a doença da menina, motiva a denúncia do Johns Hopkins, representado pela advogada Sally Smith, contra Jack e Beata, até que o Estado, mediante o Conselho Tutelar, requere a guarda dela. Ao todo, foram 87 dias de separação, de 11 de outubro de 2016 a 8 de janeiro de 2017, e nesse ínterim, tomada pelo desespero, Beata comete suicídio. Roosevelt encaminha a trama para o avesso do que se teve até aqui, com Maya agora servindo de esteio ao pai e a Kyle, o irmão caçula, lutando com as forças que imaginava não ter pela memória da mãe e por justiça, nessa ordem. Este, decerto, o grande enigma de sua figura especial.

Ao termo de 2.530 dias, período compreendido pelo primeiro dia da estada no Johns Hopkins até o último julgamento, em 5 de abril de 2022, Smith propôs um acordo, prontamente rejeitado por Jack, Maya e Kyle. Um novo julgamento está marcado para 11 de setembro de 2023.


Filme: O Mistério de Maya
Direção: Henry Roosevelt
Ano: 2023
Gênero: Documentário
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.