Mistérios cercam a natureza humana desde o princípio dos tempos, numa dimensão muito anterior a esta que nos limita e nos condena. Ainda que dispuséssemos de toda a boa vontade da sorte — ao menos naquelas quadras da vida em que só ela tem o poder de remediar o grande mal que se nos abate —, nós é que, no fundo, sempre investimo-nos da condição de juízes, carrascos, e, por natural, vitimas de nossas próprias ações. Cabe-nos somente a nós bater o martelo e só nossas são a culpa ou a fortuna pelo destino que nos aguarda, por mais que as artes, a ciência, o pensamento filosófico, a religião ocupem-se de proporcionar ao homem todos os recursos quanto a minimizar suas inadequações mais perturbadoras e acender um farol em meio ao oceano do sem fim de quimeras vãs que nos iludem, arrastam-nos para o redemoinho de caos e falsas esperanças que nos alimentam e nos dão uma sensação de onipotência só para manifestar a força de seu veneno na primeira oportunidade e ao cabo de uma tortura lenta e silenciosa, sufocando-nos com a crença tola de, quem sabe um dia, fundear na praia da ventura, lugar mágico, diabólico e santo, onde dar-se-ia a transubstanciação do mal em bem.
Como se avessa ao estar no mundo, a própria felicidade se nos apresenta como um dos tantos perigos da vida. Presa dos mecanismos de repressão e autocensura dos quais nunca livra-se de todo; esforçando-se para contornar a dureza do real por meio da autoridade salvífica e intangível da fé; colocando à prova seus limites e seu afinco em tornar reais as mudanças, óbvias ou profundas, fáceis ou torturantes, de que considera-se digno; sempre flertando com a tragédia, à espreita, sedutora, nos arcos mais delgados do caminho; equilibrando-se sobre o fio tênue que aparta o caos do inferno: em todos os sete títulos que agrupamos na lista abaixo nota-se, de uma forma ou de outra, esse paradoxo invencível da alma humana, mediado pelas circunstâncias abstratas que fazem com que tudo pareça o delírio imanente que voeja sobre a existência de cada um em maior ou menor grau. No brasileiro “O Lobo Atrás da Porta” (2013), Fernando Coimbra destrincha um dos crimes mais abjetos da crônica policial carioca, justamente apontando para a fúria irracional da natureza do homem, tão persuasivamente vigorosa a ponto de fazer com que alguém confunda amor com ódio. Já “O Mistério do Farol” (2018) é o arrazoado do dinamarquês Kristoffer Nyholm sobre os motivos da vida ser tão pouco dadivosa para alguns, ferrando na audiência a dúvida que a consome. Do mais novo para o de lançamento mais atual e em ordem alfabética, “O Lobo Atrás da Porta”, “O Mistério do Farol” e outros cinco títulos constam do acervo da Netflix e representam essas histórias entre macabras e fascinantes, mas também didáticas, ansiando por ensinar-nos a nunca descuidar de nossas misérias.
Disposta a manter a estrutura de insânia do livro que lhe deu origem, a diretora peruana Claudia Llosa reproduz na tela a angústia das páginas de “O Fio Invisível” (2021). O romance da escritora argentina Samanta Schweblin, publicado em 2014 e muito bem recebido pela crítica, já parece um filme por natureza ao observar a dinâmica do thriller, mas Llosa consegue enxugá-lo de modo a ressaltar o argumento central e fazê-lo absorver a linguagem do cinema sem que a narrativa tenha de se precipitar, sem que os eventos se sucedam uns por cima dos outros. Llosa consegue apresentar cenas ora intensas, ora comoventes, realçando a força do enredo, hábil em falar de vida e de morte numa mesma sequência, provocando sensações díspares que oscilam entre o encantamento por uma trama que valoriza uma emoção nem sempre explorada em filmes: a incomunicabilidade. A própria escritora coassina o roteiro de “O Fio Invisível” com Claudia Llosa, que tem elaborações estéticas saborosas, como a da sobreposição de um cavalo e um homem em contraplano, dando a ideia de serem uma só criatura, um centauro, ente monstruoso que alude diretamente à desajuste do homem no mundo, bem como à urgência por se lutar pela vida, equação cuja resposta pouca gente tem.
A despeito de considerações no que toca à dificuldade em se classificar um filme dentro de um único gênero específico, “The Soul” é uma das mais gratas surpresas do cinema. Existem as histórias estimulantes sob o ponto de vista estético, visualmente ricos, cujo conteúdo nem de perto corresponde à boa expectativa gerada pelos olhos; há as que dispõem de uma narrativa bem desenvolvida e que, de quebra, ainda contam com direção e elenco de primeira, mas não muito sugestivos aos olhos; e, por fim, passam à história os raros que, como este trabalho do diretor taiwanês Cheng Wei-hao, sofrem de uma maravilhosa esquizofrenia artística: são muitas coisas, mas têm identidade própria. A ideia original do filme de Cheng talvez ludibrie o espectador justamente por causa da fria naturalidade com que é apresentada. De pronto, se sabe que o promotor de justiça Liang Wen-chao, de um Chang Chen em seu melhor papel, e a esposa, a policial Ah-bao, vivida por Janine Chang Chun-ning, debruçam-se sobre a investigação do homicídio de um megaempresário, dono de uma corporação que controla uma cadeia de empreendimentos milionários em toda a Ásia. O enredo não se alonga muito sobre esse arco dramático num primeiro momento, mas se denota que entre os suspeitos do assassinato estão a mulher e o filho da vítima.
Comparações, sobretudo, em se tratando de produtos culturais, além de quase sempre indevidas, tendem a refletir cenários enganosos. Isso posto, o japonês Sion Sono poderia ser chamado de o mais ocidental dos diretores asiáticos, uma vez que seus filmes refutam com convicção assuntos fundamentalmente idiossincrásicos de sua gente, ainda que se sinta que em momentos pontuais de sua carreira imponha-se a vontade de falar a suas raízes, ordem que ele acata de pronto. “Floresta de Sangue” talvez seja de seus filmes o que com mais habilidade lida com essa pretensa dicotomia, entre uma identidade muito particular e a intenção de ir mais longe na abordagem de temas universais a exemplo de amor, ódio, desejo, rejeição, ganância. Quem não dispõe de intimidade com o trabalho do diretor se surpreende, para o bem ou para o mal, mormente quando se lembra do que a indústria sói lançar de tempos em tempos, contemplando o terror e o suspense em medidas equivalentes ou quase, em especial no Oriente. Sono leva a sério a máxima de que a arte serve para incomodar e, dessa maneira, sabe exatamente qual o seu lugar no mundo, o mundo inteiro, mantendo sua ideia fixa por colegiais de uniforme que se entregam sem pudor a joguinhos sexuais regados a algum sadismo e outros fetiches menos evidentes.
Em “Calibre”, um homem se encontra numa quadra da vida em que, meio oprimido por todas as responsabilidades de ser pai, malgrado não tenha ideia sobre o prazer que essa nova condição pode lhe proporcionar, começa a sacudir sua história, como uma se faz com uma mala cheia demais de objetos sem valor, à cata de qualquer memória que possa justificar a viagem. O personagem de Jack Lowden, protagonista do filme de Matt Palmer, dá a impressão de estar um tanto deslocado frente à importância do caminho pelo qual se decidiu, se é que decidiu alguma coisa. Por essas e outras, aceita sem tergiversar o convite de Marcus, de Martin McCann, para uma caçada nas Terras Altas da Escócia, no noroeste do país, mesmo sem saber atirar e sequer demonstrar o mínimo gosto pela atividade. Conforme o enredo avança, vai ficando cada vez mais claro que sua vontade é apenas satisfazer o amigo, que não via há quinze anos. Ainda que não se preste a desempenhar a função de filme para refletir, “Calibre” sugere nas entrelinhas interessantes pontos de vista do diretor acerca de assuntos como a livre venda de armas, alcoolismo, abuso de drogas, além dos perigos de amizade desinteressadas apenas na superfície.
Há homens que experimentam o conforto espinhoso da glória pelo que fazem, mas também há os que se entram para a História pelo que deixam de fazer. “O Mistério do Farol” é um arrazoado sobre os motivos da vida ser tão pouco dadivosa para alguns, ferrando no espectador a dúvida que o consome. Alguém naquela situação assumiria postura muito diferente? Mesmo que mereçamos, a vida às vezes não nos é severa demais? Em 2018, o dinamarquês Kristoffer Nyholm decidira tentar entender o que haveria de mítico num episódio real, conhecido como o Mistério da Ilha Flannan, tão fascinante sob a perspectiva cênica quanto eivado de cruciante melancolia. No ano de 1900, o desaparecimento de três faroleiros, mantenedores dessa ilha a oeste do litoral da Escócia, ouriçou a curiosidade geral, justamente por reunir todos os elementos das narrativas de suspense de que o cinema se apropria tão bem. Dispondo de três gerações de atores do Reino Unido, dois escoceses e um britânico, o dinamarquês Nyholm é capaz de encontrar no que as páginas de jornais relataram mais de cem anos atrás um ponto de vista ainda mais abrangente e mais revelador, da própria trama e da alma humana.
“Tempo Compartilhado” não tem não a menor intenção de reproduzir as tantas (e engraçadíssimas) histórias de famílias felizes, harmoniosas, todas mais ou menos parecidas, que, quando em férias, conseguem a questionável proeza de buscar embaixo de cada tapete toda a sujeira depositada no transcurso de um ano (ou uma vida), catá-la com mãos diligentes e esparrar aquela imundície pelo salão, à vista de todos. Produções que investem em retratar, cada qual à sua maneira, esses momentos entre escandalosos e quase trágicos de pessoas que se querem bem e se odeiam, de modo escrachado — como em “Férias Frustradas” (1983), dirigido por Harold Ramis, ou valendo-se de humor sofisticado, em que degustam-se notas amargas de um drama que preza pelo equilíbrio, de acordo com que é levado à tela em “Pequena Miss Sunshine” (2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris — ganham o público justamente por espelhar situações que qualquer um já viveu, ou pode viver. O roteiro do diretor mexicano Sebastián Hofmann, coescrito com Julio Chavezmontes, sem dúvida se aproxima muito mais do trabalho de Dayton e Faris, mas conta com a força inestimável de que só as narrativas de suspense, com suas idas e vindas e seus altos e baixos, são capazes.
Não se questiona que casos que deveriam circunscrever-se apenas à crônica policial adquirem logo uma aura de fantasia, ambivalente, alertando os bons quanto à perversão infinita e cheia de disfarces das criaturas humanas, e servindo como uma influência aos que passam muitas vezes toda a vida à cata de uma chance para libertar seus demônios. O excelente “O Lobo Atrás da Porta”, do diretor paulista Fernando Coimbra, cuja estreia se deu em 2 de outubro de 2013, conta uma história que se passou há mais de sessenta anos, e que, lamentavelmente, continuará se repetindo enquanto houver uma alma a habitar um corpo, onde quer que seja. Não conhecer o que vai no fundo da natureza de cada homem é a maravilha e a desgraça de se estar no mundo, e não há nenhuma garantia de não se possa cruzar com esta pensando tratar-se da primeira. Em 1960, o Brasil — e, em especial, o Rio de Janeiro, e a Zona Norte da cidade com ainda mais força — foi açulado pela curiosidade mórbida em torno da figura de Neyde Maria Maia Lopes, uma moça de 23 anos. A história da mulher apaixonada por um homem casado e que, depois de iludida e abandonada por ele, resolve sequestrar e matar a filha do amante, é mostrada com assombroso realismo por Coimbra, que adiciona elementos ficcionais à sua trama a fim de conferir ao enredo algum respiro.