Viver é morrer um pouco a cada dia. O tempo é devorador de todas as coisas

Viver é morrer um pouco a cada dia. O tempo é devorador de todas as coisas

Quando você tiver acabado de ler esta frase, ela fará parte de seu passado. Esta também. Esta também. Esta também. Agora você adicionou quatro novas frases à sua imensa bagagem de passado e se encaminha para adicionar a quinta. Elas pertencem a você? Constituem seu passado? Mesmo? Talvez a questão comece antes disso: será que o passado de fato existe?

Pense bem. Rememore sua infância. Lembre-se daquele desajeitado primeiro beijo, do familiar cheiro de café na cozinha aconchegante, da professora que lhe ensinou geometria… Feche os olhos e note o quão vivas podem ser essas lembranças, quase como se estivessem acontecendo novamente. Isso tudo existiu, certo? Faz parte do grande arcabouço dos fatos que lhe pertencem. O que divide o que já se foi e o que ainda virá é essa tênue e frágil linha chamada presente. Ops!, já é passado agora. Considerando que — até onde se sabe — não é possível ter acesso ao que já existiu, tudo o que pode ser feito é trazer à memória o que já passou. É como olhar uma foto da professorinha primária: não é a mesma coisa, mas quebra um galho. Acontece, no entanto, que, a partir do momento em que o passado vem à tona em sua memória, ele não é mais passado, já faz parte do presente por meio dessa conjuração das lembranças, uma vez que existe apenas no presente instante. Mas para onde ele vai? Para onde vão todas as coisas que aconteceram e não mais pertencem ao presente? Que estranho!

Em nossa insana tentativa de categorizar a desordem natural, fatiamos o tempo como se fosse uma pizza: manhã, tarde e noite; segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos; décadas, milênios e assim por diante. Isso tudo só funciona para nosso microcosmo terrestre. Não é compatível, por exemplo, com escalas espaciais, pois, depois de Einstein e de sua surreal, assustadora e pragmática Teoria da Relatividade, destruíram-se as bases dessa crença-pizza. Provou-se por A + B a estreita relação entre tempo e espaço, de modo que não se pode imaginar o transcurso daquele num compasso similar entre nossa galáxia e a vizinha. Acredite: a estrela que você enxerga brilhante e imponente no céu pode já nem mais existir. O cientista ainda mostrou que dois observadores podem perceber o mesmo fato de um jeito completamente diferente, caso um esteja se movimentando e o outro não. Esses fatos podem ser notados, inclusive, na ordem inversa! É mais ou menos como um se duas pessoas gritassem freneticamente, tapando deliberadamente os ouvidos e se ignorando, sem que se estabeleça um diálogo fluido.

De toda forma, percebe-se o tempo como uma abstração absolutamente individual quando são imaginadas cenas do cotidiano: embora cronologicamente seja sempre igual, um minuto é nada quando se está bebendo um vinho e jogando conversa fora com alguém agradável, cuja companhia traga mais prazer que o próprio vinho; mas pode equivaler a toda uma vida, caso essa pessoa seja uma sogra mal-humorada que lhe sirva suco de limão. Ah! Sem açúcar.

A revolução da tecnologia aumenta ainda mais o “bug” cerebral: aprisiona-se o passado em vídeos que cruzarão o futuro como a lembrança de um grande amor que se foi, guardam-se informações em chips cuja memória supera a de uma esposa com raiva, projetam-se máquinas que existirão daqui a cem anos. O homem aprendeu, de certo modo, a controlar o tempo, esta doce ficção que nos move frenéticos em busca do inatingível. De certa forma, a cada instante em que nos dedicamos a controlá-lo e eternizá-lo, fica subvertida a própria ordem do tic-tac que, veja só, inventamos para nos situar. Conhecedor de tudo em raso e pouco em fundo, o homem é manipulador e vítima de um tempo sobre o qual sequer se dedica a pensar.

Quer ver a coisa complicar? Beba uns drinks e dê várias piruetas em torno de si. Depois se deite na cama e observe o quarto inteiro girar. É evidente que o quarto não está girando, existe apenas uma sensação desse movimento. E se o tempo, tal qual a tontura pós-rodopio, for apenas uma abstração? Pois saiba que a mente humana é incapaz de viver outra coisa que não o presente, este intenso e frágil momento que — ops de novo! — já virou passado. Talvez o fato de se poder imaginar o fatiamento do tempo já o torne real.

Desde que existe, o ser humano briga e faz as pazes com o tempo. Quem nunca desejou que algum instante durasse para sempre? Bom mesmo seria ter o controle remoto deste voraz devorador de momentos, que não dá margem para negociações. A cada milésimo, vive-se ou morre-se um pouco. É escolher enxergar o copo meio cheio ou meio vazio.

Bem, o fato é que, a determinada hora do dia de amanhã, seu despertador irá tocar e não haverá Einstein capaz de fazer com que os chefes mundo afora acreditem na não-obrigatoriedade de se cumprir o horário. Corra, porque o tempo está passando. Ou não?