Zé Ibarra é a beleza que resiste num mundo assaltado pelo horror Divulgação / Elisa Maciel

Zé Ibarra é a beleza que resiste num mundo assaltado pelo horror

Imagine uma multidão caminhando no rumo do abismo. Uma manada em passo espremido para o matadouro inevitável. De repente, do bojo dessa massa espirra um inconformado em sentido contrário, fugindo contra a corrente. Querendo viver.

Essa é para mim a representação mais simples da chegada de Zé Ibarra à cena musical brasileira.

Em um tempo de tantas e tão profundas porcarias, Zé Ibarra é uma esperança bonita de que a beleza há de resistir e voltar e vencer sempre. Porque ninguém tira o lugar da formosura. Tira não. Zé o ocupou desde sua chegada em Dônica, a banda que o lançou na companhia de talentos como Lucas Nunes e Tom Veloso, e agora na consagração do Bala Desejo como o que de mais interessante aconteceu no mercado de música nesses anos recentes.

De seu cantinho conquistado no panteão das pessoas belas, Zé Ibarra lançou este ano seu primeiro disco solo, “Marquês, 256”, um álbum gravado nas escadarias do prédio no Rio de Janeiro em que ele passou a infância e a adolescência.

As oito faixas do disco são releituras. Zé é um intérprete bonito, canta com as asas de uma andorinha, voa com inteligência e liberdade sobre clássicos e novas canções.

Marques, 256
Zé Ibarra: Marquês, 256

O disco começa com uma versão de “Vou-me embora”, de Paulo Diniz e Roberto José. Fez muito sucesso nos anos 70 do século passado, na voz do Paulo, morto aos 82 anos em 2022. Quem tem mais de quarenta anos deve lembrar dele. Compunha e cantava coisas como “Pingos de amor” e “Quero voltar pra Bahia”. Um maravilhoso cantor popular.

Depois de ir embora, Zé engata um “Como eu queria voltar”, rebento seu com Lucas Nunes e Tom Veloso, seus confrades de Dônica, dessas músicas que a gente ouve e chora de alegria e saudade, feito rever uma foto antiga de quem já foi. Lindo, lindo.

“Dó a Dó” é uma canção de Dora Morelenbaum com letra de Tom Veloso, seus parceiros de Bala Desejo. Muito, muito bonita. Aí vem “Hello”, inteligente, engraçada e bela canção de Sophia Chablau.

Fosse “Marquês, 256” um disco de vinil, a música “Itamonte” seria a primeira do lado B. A gente chora, tá? Eu chorei ouvindo e estou chorando agora. É muita beleza! “Itamonte” é uma canção do Zé cheia de memória afetiva. Foi gravada primeiro no Dônica, num arranjo escancarado de referências aos álbuns iniciais dos Mutantes.

As três últimas faixas de “Marquês, 256” são mais ou menos como as três últimas canções de um concerto inesquecível que nos reconcilia com a vida. Zé canta “Olho D’Água”, das parcerias incríveis de Caetano Veloso e Wally Salomão. Ô, Meu Deus! Como é bonita a música popular brasileira!

Aí vem “Vai atrás da vida que ela te espera”, sucesso antigo de Guilherme Lamounier, genial e desconhecido hoje em dia. Aliás, outro mérito de artistas como Zé Ibarra é resgatar o ouro enterrado na poeira do tempo. Não sei você, mas eu acho generoso o artista que apresenta a seu público as coisas que ele ama.

E então o disco encerra com “San Vicente”, a música favorita do Zé entre as joias do álbum Clube da Esquina, de Milton Nascimento e de Lô Borges.

Não tenho ideia do critério de Zé Ibarra para escolher as faixas de seu primeiro disco-solo. Não importa. Mas me dá uma alegria boa imaginar que ele tenha pensado em recriar uma tarde qualquer da semana na escada de seu prédio vazio, depois da escola, procrastinando a lição de casa, cantando para si mesmo e pra Deus as belezas de seu coração.

Na montanha de lixo que se tornou a indústria da música, brota uma flor esquisita e bela. Quando tudo parece tristeza, surge uma alegria abusada mostrando a língua, luzindo a noite, perfumando de vida e lavanda onde tudo cheira a estrume e destruição.

Zé é o ouro garimpado num poço de lama, a agulha no palheiro, o bilhete premiado, o “um em um milhão”, clareira no mato fechado, lufada de vento fresco no fogo da fornalha.

E um detalhe: tão firme ele está em seu propósito, tão bonito em seu movimento inverso, que arrasta com ele outros mais. E aí a vida vence e continua.

Tudo isso é só pra dizer a você que “Marquês, 256“ é das coisas mais bonitas que eu já tive a oportunidade de ouvir. Zé Ibarra, é um verdadeiro tesouro! É tanta beleza que a gente simplesmente esquece a maldade do mundo ouvindo as canções dele, uma depois da outra, em fila indiana no rumo do céu. É mais ou menos como quando a gente se flagra olhando o desenho das asinhas da borboleta. Princípio da meditação, fim bonito de tudo. Muito obrigado, viu, Zé. Que beleza imensa tem sua arte. Que bonito você é!

André J. Gomes

É professor e publicitário.