Meninas e meninos, eu li “O Perfume”, do alemão Patrick Süskind, e senti cheiro de jovem clássico no ar. Romance de imenso sucesso, o livro fez parte do rol dos chamados best-sellers de qualidade lançados ou redescobertos ao longo da década de 1980, ao lado de “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, e “Memórias de Adriano”, publicado originalmente em 1952 pela francesa Marguerite Yourcenar. Nada mais justo, considerando que apresenta um dos personagens literários mais intrigantes das últimas décadas, o perfumista assassino Jean-Baptiste Grenouille. As primeiras linhas do romance são antológicas: “No século XVIII viveu na França um homem que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis figuras daquele século nada pobre em figuras geniais e detestáveis. A sua história é contada aqui”.
Esse tom direto e desprovido de truques retóricos é mantido ao longo de todo o livro. Não que Patrick Süskind escreva de forma didática ou monocórdia, o estilo seco é intencional e necessário, espelhando a personalidade desprovida de empatia do protagonista. Jean-Baptiste Grenouille é um monstro, isso fica evidente desde o começo, mas, ao contrário do que ocorre com outros personagens terríveis, em momento algum o autor procura humanizá-lo, impregná-lo de carisma ou torná-lo simpático ao leitor, como ocorre, por exemplo, em “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess. Grenouille é, literalmente, um homem sem cheiro, metáfora para sua condição de homem sem alma. A própria violência que pratica é surreal e inexplicável. Ele mata jovens belas e inocentes para roubar suas essências e conseguir matéria-prima para fabricar o perfume perfeito, capaz de dominar reis e submeter papas à sua vontade. Um perfume que poderia torná-lo dono do mundo.
Grenouille consegue atingir seu objetivo. Poderia, se assim desejasse, conquistar o mundo. Mas isso não o interessa. Poder não lhe interessa. Sexo não lhe interessa. Prestígio não lhe interessa. Nem mesmo reconhecimento por seu grande feito o interessa. Não produziu o perfume perfeito por considerar-se um perfumista genial, um artista do ramo. O triunfo técnico e estético não o comove. Saber que criou uma obra-prima lhe é indiferente, assim como a violência que teve que praticar para atingir sucesso em seu experimento químico. Fez apenas porque sabia como fazer, nada mais. É uma criatura tão vazia e apática que decide usar o perfume de maneira absolutamente surpreendente, gerando uma das cenas finais mais impactantes da literatura do século 20. Um desfecho que desafia os espíritos mais delicados.
“O Perfume” é um grande livro, embora não seja desprovido de problemas. Em alguns momentos a verossimilhança interna fica comprometida. Não me refiro a realismo, uma vez que trata-se de um livro com fortes traços de fantasia. Também é impossível ignorar que perde o ritmo no meio da narrativa, sobretudo nos capítulos em que o protagonista decide se tornar um eremita. Mas nada disso tira seu lugar como um dos romances mais geniais e detestáveis de um século nada pobre em romances geniais e detestáveis.
Livro: O Perfume
Autor: Patrick Süskind
Tradução: Flávio R. Kothe
Páginas: 219
Editora: Record
Nota: 9/10