“O Livro de Eli” mesmeriza em inúmeras passagens — isso para não citar uma em especial, em que o personagem-título, vivido com inspiração particularmente espantosa por um Denzel Washington talhado para o papel, despe-se de sua máscara cênica. A estreia, num já distante 19 de março de 2010, consagra os gêmeos Albert e Allen Hughes como diretores invulgares, preocupados tanto com detalhes técnico-estéticos como no que concerne ao enredo em si, peça de evidente iluminação graças ao texto de Gary Whitta, para, outra vez, não falar do apuro estilístico. Ninguém aguenta muito tempo sem que comece a sentir ganas de parar tudo de imediato e fazer um balanço sincero de sua vida até então, pesar os prós e os contras, ver no que acertou e no que poderia não ter errado, largar tudo e mudar de vida. Os mais sensíveis perdem a voz, e se flagram derramando uma e outra lágrima nada furtiva, e o filme vai tomando corpo, hermético apenas à vista mais ligeira.
Eli é um andarilho solitário e desnorteado numa América em ruínas, depois de sucessivos anos de embates bélicos por comida, terra para ser cultivada e, o mais importante, água, num mundo apático, combalido demais para reagir depois de tantos ataques. Esse homem misterioso, esquivo, soturno, a antítese mesma de qualquer profeta, de qualquer salvador que se preze, caminha para o oeste por essa paisagem assolada pelo inclemente passar do tempo, aniquilada pela ganância irrefreável do homem há trinta verões, a caminho do mar, sem saber exatamente para onde deve seguir. Seu destino é o lugar de onde foi tirado o livro que carrega, muito bem guardado, como se a débil possibilidade de continuação da pouca vida que ainda resta não fosse submetida a qualquer ameaça desde que se mantivesse em suas páginas. Esse livro é tudo quanto tem na vida — e o personagem de Washington não parece disposto a abdicar de suas convicções, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores, a começar com os inúmeros tipos que tentam subjugá-lo e detê-lo em seu propósito. O protagonista responde à altura, brandindo a única arma de que pode dispor, um facão afiado com esmero, mesmo que pistolas, espingardas e rifles surjam-lhe de longe em longe, além de bem aprendidos golpes de artes marciais, momento em que a ação do filme recrudesce. Último bastião do bem possível, Eli é frequentemente acossado por maltas de sequestradores e ladrões pilotando motocicletas, quiçá o máximo de sofisticação que essa terra sem lei consegue alcançar. Dessas pelejas físicas, inicialmente acanhadas, mas de relevância gradual, o candidato a redentor de uma humanidade dividida extrai o lado popular que far-lhe-ia diferença, o que apaga em certa medida a aura filosófica do trabalho dos Hughes.
Abusando do sépia, em tons de castanho que puxam para o cinza, a fotografia de Don Burgess é outro expediente de que os diretores se valem a fim de realçar o lirismo underground da narrativa — e a correspondência com as produções da franquia “Mad Max” salta aos olhos. Entretanto, Washington e os Hughes têm o condão de imprimir estilo próprio e criatividade em “O Livro de Eli”. Do mesmo modo que o personagem central se depara com seus incontáveis antagonistas, englobados em Carnegie, mais uma atuação memorável para o porta-fólio de Gary Oldman, tentando em vão corrompê-lo, Eli descobre o apoio moral da prostituta Solara, de Mila Kunis, criada por Carnegie e a mãe, Claudia, de uma Jennifer Beals que, lamentavelmente, passa sem se fazer notar.
Albert e Allen Hughes encaminham seu filme para a conclusão que preserva a intrínseca atmosfera distópica de “O Livro de Eli” e faz da trama uma narrativa sem par, não obstante o argumento surrado. Metáfora refinada do fim dos tempos, essa é uma história de profissão de fé na humanidade, que só conseguirá pôr-se a salvo da aniquilação definitiva em se respaldando nos homens certos — o que, como se nota, é tarefa muito mais árdua do que deixa parecer.
Livro: O Livro de Eli
Direção: Albert e Allen Hughes
Ano: 2010
Gênero: Ação/Aventura
Nota: 9/10