Bula de Livro: Primeiro Tive que Morrer, de Lorena Portela

Bula de Livro: Primeiro Tive que Morrer, de Lorena Portela

Meninas e meninos, eu li “Primeiro Tive que Morrer”, romance de estreia de Lorena Portela, e coloquei em dúvida uma de minhas maiores convicções estéticas. Sempre pareceu-me artificial e um tanto machista a velha polêmica sobre a existência ou não da chamada ‘literatura feminina’. Ou seja, se há certo estilo de escrita que denúncia sua autoria em função de algum tipo de indisfarçável delicadeza ou sensibilidade. Para mim, não existe ‘literatura feminina’. Existe apenas literatura. Sou do time de Cecília Meireles que não gostava de ser chamada de poetisa, mas simplesmente de poeta. Com essa postura, Cecília Meireles atestava que artisticamente não era diferente de Drummond, Bandeira ou João Cabral de Melo Neto. Concordo totalmente.

Ou não tão totalmente, uma vez que “Primeiro Tive que Morrer” deixou-me em dúvida. Lendo, por exemplo, “Chuva de Papel”, de Martha Batalha, “Os Malaquias”, de Andréa Del Fuego, os romances policiais de Patrícia Mello, ou mesmo “O Peso do Pássaro Morto”, de Aline Bei, não me parece relevante ou evidente que foram escritos por mulheres. Não sei se posso afirmar o mesmo sobre “Primeiro Tive que Morrer”. Não sei se um homem, nem mesmo se fosse o próprio Pierre Menard, seria capaz de escrever esse livro, sem parecer artificial.

Lorena Portela
 
Primeiro Tive que Morrer, de Lorena Portela (Planeta,‎ 176 páginas)

Não estou afirmando que “Primeiro Tive que Morrer” é um livro para meninas, sobre meninas e feito por meninas. Pelo contrário, acho que sua leitura é altamente recomendada para qualquer homem que não considera que arrotar em público é uma virtude viril. Não só por representar uma instigante janela para o universo feminino, mas por ser literatura de verdade. Certamente, não é um triunfo artístico ou um colosso narrativo. Nem se propõe a tanto, mas é uma obra honesta e reveladora, quase íntima. A escrita de Lorena Portela é cuidadosa e sucinta. Suas eventuais vulnerabilidades de forma e conteúdo dialogam com a narrativa proposta, mesclando-se a ela a ponto de se transformarem em camadas da personalidade fragilizada da protagonista, sublinhando-a.

A protagonista é uma jovem publicitária à beira de um ataque de nervos, para não dizer que não cai na tentação de citar Almodóvar. Ela tira férias forçadas do trabalho e vai para uma vila paradisíaca em Jericoacoara, no Ceará, onde passa por um lento e doloroso processo de recuperação física e psicológica. O enredo se desenrola no ritmo cadenciado das ondas que quebram na praia, mostrando as relações entre um grupo de mulheres de diferentes idades, nacionalidades e perfis culturais. Nenhuma delas é estereotipada ou um personagem superficial. Diferentes formas de intimidade e cumplicidade formam-se entre elas, numa mescla entre episódios prosaicos e surreais jamais explicados. Apesar do peso da premissa básica, o romance é solar e otimista.   

O final semiaberto não sugere um futuro de aventuras possíveis. Propõe o fechamento de um ciclo, com perdas e ganhos, sem nenhum tipo de redenção definitiva. Como a vida. Em “Primeiro Tive que Morrer” a vitória está em conseguir forças para ter coragem de mudar e seguir em frente.


Livro: Primeiro Tive que Morrer  
Autor: Lorena Portela
Páginas: 176
Editora: Planeta
Nota: 8/10

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.