Há momentos em que a vida parece estar mergulhada em inferno astral. É como se todos os pilares da existência — família, relacionamento, trabalho, amizades… — se unissem sadicamente para testar o fôlego do cidadão. De forma otimista, buscam-se justificativas transcendentais e pedagógicas, nomeando-se a fase negra de “teste divino”, “provação espiritual”, ou “alinhamento dos astros”. Não interessa a expressão, a verdade é que há vezes em que o dia a dia se torna um saco e parece que se está a um fio da autoimplosão.
Como lidar? Haja paciência! Haja sangue frio para engolir gente maluca, família heterogênea, mal-entendidos absurdos e obrigações pouco agradáveis. Haja pulmão para tanta respiração profunda, e coração para tantas emoções desagradáveis. “Vai passar”, repete-se sabendo que a calmaria há de chegar. Sim, mas e até lá?
Vez ou outra, Platão atravessa os milênios para nos coroar com sua sabedoria atemporal. “Tente mover o mundo — o primeiro passo será mover a si mesmo.” Talvez seja por aí. O primeiro passo pode ser direcionar os holofotes para dentro e começar a dar um passo de cada vez na medida do alcançável, pensando em cada dia de forma fracionada, sob pena de se frustrar ainda mais. O que pode ser feito neste exato minuto? A quem posso direcionar meu primeiro passo?
Milênios depois de Platão, Bukowski, um pouco mais subversivo, soltou: “Qualquer problema que você tiver comigo é seu.” Por mais estranho que possa parecer, ambas as filosofias se intercruzam num ponto fundamental: o foco no eu. Se há um problema entre João e Maria, o que existe, na verdade, são dois problemas: um que João tem com Maria e outro que Maria tem com João. Se ela fez tudo o que poderia para resolvê-lo, mas ele não, agora só há um impasse: o de João com Maria. Check. Maria pode riscar aquilo de sua lista ou arrastar-se para todo o sempre, a fim de que João enxergue seu ponto de vista.
Percebe? As complicações nas relações interpessoais não podem ser encaradas com um espírito terceirizado e alheio que se resolve por si. O esforço há de ser, na maioria esmagadora das vezes, mútuo. No fundo, elas nada são senão enfoques diferentes sobre o mesmo problema, os quais devem ser individualmente resolvidos. A verdade, portanto, é que as questões são solucionadas de forma muito mais individual do que se pode imaginar.
Se o problema, no entanto, não disser respeito a outrem, mas, sim, a decisões eminentemente pessoais, é provável que Platão, do alto de sua sapiência simples — porém inegável — seja de grandíssima valia: para se mover mundos internos, é necessário dar o primeiro passo e focar no próximo, procurando evitar o desespero ao máximo.
É bem verdade que a vida não é fragmentada. Não se podem abrir gavetinhas temáticas. Um desequilíbrio no casamento, por exemplo, há de afetar a profissão, como um tropeço na espiritualidade pode comprometer a relação pais e filhos. No entanto, embora a vida em si não seja feita de pedaços, tentar compreendê-la dentro das possibilidades que o dia de hoje oferece é uma chance de fazer dar certo.
Bukowski e Platão… Quem diria que pensadores tão diferentes poderiam se unir em prol de um eu mais harmônico.