O terror decerto é o gênero em que as mais diferentes linguagens cinematográficas irmanam-se de forma a estabelecer um produto coeso, com intenções bastante definidas. Exatamente por esse motivo, histórias que fazem pouco da realidade enquanto ainda conseguem levar o público a reflexões nada fantásticas sobre a vida como ela é, caem logo no gosto do espectador comum, a exemplo de “Tin e Tina”, o terror psicológico de Rubin Stein. É um perigo absolutamente desnecessário se ficar a erigir conjecturas que sempre podem morrer no ovo; não obstante, em se mantendo a qualidade e a constância do que Stein apresenta em seu primeiro longa-metragem, o espanhol vai escalar depressa as muitas colinas escarpadas do panteão do cinema e, quem sabe, desbancar muita gente que já deveria ter caído, mas, ardilosa, segura-se nos galhos do politicamente correto e do marketing, e assim transcorrem séculos. Quem viver verá.
Conforme o filme se desenrola, toma substância uma fina concertação de imagens, sons e, o mais importante, pensamentos, que aglutinam-se com o intuito de aos poucos encaminhar a narrativa para o terreno de onde só sai ao cabo das duas horas de projeção — que passam sem que se note. O diretor-roteirista vale-se do discurso religioso, ora matizado, ora peremptório, como um dispositivo que tanto atrai como repele quem assiste, mas em nenhum momento a audiência percebe o artificialismo com que Stein brinca todo o tempo, entre leviano e convicto, esfregando-nos ao rosto a obviedade do que quer dizer já no prólogo. Na sequência, a plongée da nave de uma igreja, cheia, durante a celebração de um casamento, um casal jovem ouve o padre e faz os votos, mas não há romantismo que suporte uma noiva a se esconder sob um pesado véu — e esse é apenas o primeiro dos muitos vitupérios de
“Tin e Tina”. Nesse mesmo segmento, os dois chegam à porta e antes que a chuva de arroz termine, uma tragédia silenciosa deixa claro que até podem continuar juntos, esperando que só a morte os separe, mas não serão felizes.
A trilha meio brega de Jocelyn Pook ameniza esse choque inicial, e Adolfo e Lola (cujo nome, não por acaso, é María de los Dolores) conseguem se esquivar das armadilhas da vida a dois, que não tarda a ficar pacata demais, besta demais, como se em cada faltasse um pedaço — e, na verdade, falta mesmo. Jaime Lorente e Milena Smit alternam-se na preferência de quem assiste, absorvendo sem dificuldade o propósito farsesco de Stein, que põe na boca do personagem de Lorente considerações estúpidas sobre o humor da esposa depois de carregar a mala dos novos moradores da casa (e também aqui, o diretor encerra segredos que guarda pelo tempo estritamente preciso). Os personagens-título, de Carlos G. Morollón e Anastasia Russo, roubam a cena graças a boa performance, mas também ajudados pela equipe de maquiagem de Anabel Beato, que os faz parecer mesmo vampirinhos de desenhos animados; nesse particular, a fotografia de Alejandro Espadero abusa do branco em gradações entre o brilhante e o leitoso, fazendo com que sobressaia a inadequação das crianças ao novo ambiente, ou pelo menos aos pais adotivos, que vestem-se em tons escuros na maior parte das vezes. O texto de Stein é tão cuidadosamente rico que mesmo esse ponto de vista, a pretensa excentricidade de Tin e da irmã, caem por terra em se baseando na própria figura de Lola, jovem, bonita malgrado soturna, mas fora de qualquer padrão por uma minudência que disfarça muito bem.
No terceiro ato, o filme torna à abordagem religiosa, de forma decisiva, mas para reparar todos os enganos a que possa, porventura, ter induzido. Especialmente nessa seção, “Tin e Tina” conversa com o melhor que o cinema já fez e tem feito no terror, como “Boa Noite, Mamãe!” (2022), dirigido por Matt Sobel, “Midsommar” (2019), de Ari Aster, “O Iluminado” (1980), levado à tela por Stanley Kubrick (1928-1999), e “O Bebê de Rosemary” (1968), de Roman Polanski, sem prejuízo da originalidade. Copiar parece simples, mas exige muito talento.
Filme: Tin & Tina
Direção: Rubin Stein
Ano: 2023
Gêneros: Terror psicológico/Mistério/Suspense
Nota: 9/10