Sergio Leone (1929-1989) foi um visionário. Leone, homem muito à frente do seu tempo, tinha o condão de mudar toda a estrutura narrativa de seus filmes, fazendo com que se mantivesse em seus trabalhos o imanente desejo de reparação, substância incorpórea que irmana certos homens num objetivo que até se pode reputar questionável, mas que sem dúvida, por mais bestial que se revele, doma ânimos meio exaltados demais. “Sangue e Ouro” tem muito do western spaghetti do italiano na forma como o diretor Peter Thorwarth materializa na cena a angústia de seus protagonistas, funestos, desprezados, mas o alemão não se furta a manifestar a sua opinião acerca de assuntos que poderiam muito bem ser evitados, mas uma vez que se os toma, o enredo ganha cores mais vivas, restando ao público se confirma ou não seu ponto de vista.
No fim da primavera de 1945, quando a neve já começa a tomar os campos, um homem é perseguido por aqueles com quem estava até há poucos dias. A Alemanha também sente o impacto da Segunda Guerra Mundial, depois de seis anos de combates encarniçados, mas a reconstituição histórica não é o forte nem a pretensão de Thorwarth, que se concentra mesmo é em apresentar as contradições de seu herói, um guerreiro que conclui que desperdiçou 72 meses da vida por uma causa abominável, na qual jamais conseguiu acreditar. Por algum motivo, ou por convicções tão frágeis que acabaram por esfacelar-se, pelo cansaço de uma vida de constantes privações, ou, o mais provável, devido à sobreposição desses dois fatores, Heinrich, o soldado raso vivido por Robert Maaser, decidira abandonar de vez as tropas de Hitler, embora todo militar saiba que destino recebem os desertores, seja lá qual forem as circunstâncias que os levam a pular do barco.
Heinrich termina na ponta de uma corda, tentando não sucumbir ao peso de seu corpo e assim evitar um fim pateticamente trágico, mas claro que não vai poder contornar sua agonia por muito tempo — na verdade, seu calvário fica tanto mais insuportável à medida que teima em não ceder à força da gravidade, e se começa a supor que alguma salvífica reviravolta há de poupá-lo. Queira-se ou não captam-se do roteiro de Stefan Barth arranjos místicos e metáforas crísticas que caem bem sobre o personagem de Maaser, uma alma que tenta fugir do martírio de passar toda a vida obrigado a conviver com a consciência banhada pelo sangue de inocentes, mas que agora se depara com o risco de se redimir às custas do seu próprio sangue. Ainda nessa sequência, Barth torna a explorar o potencial ascético desse momento, incluindo na cena uma figura que Heinrich julga sobrenatural, mas que ainda pertence a este mundo, como ele, por mais nem mais o sinta.
Do segundo para o terceiro ato, o diretor põe de lado a abordagem espiritualista da abertura e também burila a vocação de narrativa de guerra de seu trabalho, até insinuando um romance que, se toma corpo, é para além dos cem minutos de projeção, com a Elsa de Marie Hacke prestando-se a uma redentora muito mais palpável para Heinrich. Há, sim, muito sangue nesse filme, mas o ouro é para poucos. Pensando, ele nem faz tanta falta.
Filme: Sangue e Ouro
Direção: Peter Thorwarth
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Ação
Nota: 8/10