Eu o amava. Mas amava ainda mais a possibilidade de viver outros amores

Eu o amava. Mas amava ainda mais a possibilidade de viver outros amores

Eu o amava. Estava tão segura disso quanto Julieta, Cleópatra e Isolda estiveram um dia. Nosso amor pairava sobre as relações perecíveis e suas previsíveis histórias triviais. Vivíamos em outra dimensão sensorial onde tudo era cintilante; o olhar em plongé, o sorriso simpaticamente torto, a voz que mais parecia canção de Jobim. Até a gravata eu amava. O perfume, o cabelo perfeitamente simétrico e a maestria com que manejava as mãos. Eu era tão soberana na arte de amar aquele homem. Fui majestade de um reinado a dois, até o momento em que meu castelo foi invadido por um terceiro componente. Senhoras e senhores, lhes apresento: o outro.

Dizem que nós só buscamos ou permitimos nos aventurar quando a nossa relação começa a apodrecer, a deixar os pedaços pelo meio do caminho. Será mesmo? Eu penso que o coração é feito casa, com porta, janelas e jardim. Todas as noites passamos a fechadura, até que, por um descuido ou distração, a porta dorme aberta e a janela encostada. Pronto. É chegada a hora em que o ladrão entra em cena. Petrificadas pela invasão de domicílio, mal conseguimos raciocinar. Sorrateiro e voraz, ele nos rouba a casa inteira e nos faz de refém. E o pior: a gente gosta.

Não era amor, era outra coisa. Um estado ou faculdade de aflição, um magnetismo febril, ímpeto irreprimível. As entranhas convulsionavam e expeliam o aroma da carne fresca. Não, aquilo não era amor, mas era algo tão bom quanto. Não trazia paz nem reconforto. Muito pelo contrário, a necessidade de consumir o anônimo era urgente e conturbadora. Aliás, com o corpo em combustão, a cabeça deixara de trabalhar de maneira sensata. Esquecera o olhar em plongé, o sorriso simpaticamente torto, a voz que mais parecia canção de Jobim. A gravata, o perfume, o cabelo, as mãos.

O tesão acenou de longe, encostado num canto do bar. Se aproximou, vadio, deslizando cotovelos, encontrando sapatos, borrifando no ar o veneno ardente do desejo. Foi assim que ele chegou. O tesão, que se espreme na fila do supermercado, que se lança nos olhares proibidos de cidadãos compromissados, que incendeia bem ao lado na poltrona do avião, que se embrenha na hora do cafezinho, no meio de um dia corrido no escritório. O tesão é como uma tropa de cavalos correndo num campo. É praticamente impossível pará-los.

Eu o amava. Mas aquela sensação galopava paralela ao meu sentimento, dando origem a um novo capítulo, de um novo livro, com uma nova pessoa. Histórias que não se convergiam, prazeres absolutamente distintos.

Por mais que amemos o nosso par, que vivamos em harmonia e serenamente felizes, por vezes a natureza humana fala mais alto. Não é porque a gente ama que se deixa de ansiar o desconhecido. Por que sempre temos que associar o desejo pela novidade com a perda do amor pelo habitual? São coisas fisiologicamente distintas.

Quantas vezes nos surpreendemos flertando com um charmoso executivo no restaurante ou com um hippie de rastafári no trem, ainda que absolutamente comprometidas, fiéis e apaixonadas pelos nossos? Talvez seja o conhecimento que temos do nosso parceiro, a intimidade já destapada e a perda do mistério que despertam a curiosidade pelo estrangeiro. Infidelidade imaginária nada tem a ver com amor. Amor é amor e tesão é tesão. Simples assim.

A verdade é que só a possibilidade de uma experiência alternativa já é viver uma novidade em si, quer se realize ou não. Aí é uma questão de escolha.

O fato é que eu o amava. Mas amava ainda mais a possibilidade de viver outros amores. Imaginários ou não.

Karen Curi

é jornalista.