Morador da Tijuca desde 1982, o Maracanã sempre foi quintal da minha casa, e não apenas palco onde meu outrora apaixonante Fluminense trucidava Flamengo, Vasco e quem mais viesse pela frente.
Tanto para mim quanto para todos os moradores do entorno, ir ao Maracanã nunca foi um evento. Programa mesmo era ir ao cinema, visitar minha a avó no Leme, brincar de tomar tombo na pista de patinação no gelo do Barrashopping. Ir ao Maracanã, ao “Maraca”, equivalia ao frango da padaria aos domingos, a comprar pipa na Carvalho Alvim, a jogar bola na Xavier de Brito. Fazia parte do cotidiano, da nossa vida.
Agora, pensando assim, rápido, fica difícil lembrar de um jogo importante em que não tenha estado presente. Mesmo quando não tinha o Tricolor em campo. Nestes permanecia anônimo, invariavelmente torcendo para que acontecesse a maior catástrofe possível. Deu certo em várias ocasiões. No gol do Maurício contra o Flamengo estava lá eu, enfiado no meio dos urubus. Secar o Fla in loco, aliás, era uma diversão. Final da Copa do Brasil contra o Grêmio? Idem. Também presenciei o vice rubro-negro perante o Independiente. Os vascaínos com sua caravela de isopor, botafoguenses querendo esganar Márcio Theodoro, um impossível Edmundo levantando a taça ao lado de Evair e a aterrorizante avalanche humana despencando da arquibancada.
Sim, foram vários os momentos. Lembro dos grandes jogos, porém também existiam os de meio de tabela. Nestes, menos decisivos, às vezes ia de geral. Dali só era possível ver a canela dos jogadores, a rede do gol bem esticada e a arquibancada logo acima.
O Maracanã era meu lar doce lar.
Se é natural nossa memória afetiva acompanhar sensação de posse, mais ainda é considerar o passado vivido melhor que o presente alheio.
Tenho um sobrinho que obviamente está todo conectado em todas as redes sociais possíveis e imagináveis. É ainda bem novo, mas já sai de noite e vive situações que eu, com sua idade, jamais pensei viver. Sua infância foi a do videogame, cada vez mais moderno, com mais botões no controle, graficamente impecável. As garotas lhe dão uma atenção que só era concebível em sonho para os pirralhos na década de 1980. Ficávamos apavorados com a ideia de tirar uma menina para dançar nas festas regadas a salgadinhos e coca-cola (casco de 1 litro), quando na vitrola começavam a tocar as chamadas “músicas lentas”.
Para ele, manga se compra no mercado, pipa é nome de caminhão d’água, bola de gude, kichute e “revista de mulher pelada”, inúteis memorabílias.
Não para mim. Fazem, todos estes vários detalhes, parte do meu mundo. Pudesse escolher, jamais trocaria a infância que tive por esta que vivem as crianças hoje em dia. Nunca.
O problema é admitir que meu avô deve ter dito a mesma coisa a meu respeito. E que provavelmente meu sobrinho fará igual quando for pai, tio, avô.
O divertido “Meia-Noite em Paris” bate nesta tecla com maestria. Nostalgia é algo natural, mas é um equívoco deixar que nosso egoísmo a personalize.
Assim, o meu Maracanã, das torcidas que saíam juntas pela rampa quando ainda não estava instituída esta cretina “tolerância zero”, do cachorro quente e do mate, do placar eletrônico que mostrava o bonequinho fazendo gol e jardins em volta do gramado, e também de coisas péssimas, as quais hoje em dia preferimos ignorar, ou agora que estão distantes tomá-las como românticas, acabou.
Só é importante dizer que não acabou agora, ainda que o queixume orquestrado crie esta fantasia.
Neste ponto deixo de lado saudade e a tendência de tomarmos nosso passado como absoluta referência de felicidade. E até a mesmo a megalômana maracutaia que envolveu a reforma do próprio Maracanã e outros estádios. Ainda que um seja compreensível e o outro caso de polícia, a verdade é que ambos são instrumentalizados para disfarçar um raivoso recalque.
No Brasil das cotas raciais, o verdadeiro preconceito, aquele que realmente interfere em nossas vidas, é o social. Sendo mais explícito, grana. Infelizmente é o que nos define. No Brasil, dinheiro compra respeito, admiração, sexo, emprego e até amor verdadeiro.
Existe, porém, um parênteses. Se na maioria das situações o poder que a condição financeira proporciona se impõe ao natural temor e inveja que provoca, no mundo do futebol dá-se o inverso. Quem tem grana, o “bem-nascido”, é visto com desconfiança e descrença. Destes, isto sim, é exigido sempre mais. Suas conquistas são relativizadas, diminuídas justamente por sua condição social e econômica.
Uma lógica ligada diretamente à imagem que temos do futebol como esporte do povo, ainda que suas raízes sejam absolutamente elitistas. Por este motivo, alguém que não tenha ajudado a mãe na feira, aprendido a fazer embaixadinha com laranja ou, pior ainda, que tenha estudado, passa atestado de “penetra”.
Futebol, no Brasil, desde antes mas principalmente a partir dos anos 1980, virou sinônimo de espetáculo barato, desconforto e alguma periculosidade. Em resumo, como sempre se disse nas peladas, futebol “é pra homem”.
Pois ainda bem que está mudando.
O Maracanã era originalmente cinza, como ficou, e não repleto de pastilhas azuis como conhecíamos. Nem a geral acabou nestes últimos anos, mesmo que dia desses um colunista tenha tido a ousadia de dizer “fui ao Maracanã e me senti em outro estádio, onde estava a minha geral?”. Nem as cadeiras são novidade, embora queiram atribuir a elas o divino poder de arrefecer a paixão do torcedor.
E não caio no terror que jornalistas acostumados a emprenhar opiniões esportivas com políticas fazem, de que o Maraca, eterno Maraca, transformou-se em casa de espetáculos, em algo estéril, sem alma.
No dia seguinte ao já épico jogo contra a Espanha, estes mesmos ficaram calados. O Maracanã pulsou. Fez pressão. Comportou-se como sempre se comportou.
A verdade é que não serão os braços de uma cadeira, nem conforto e segurança que farão o torcedor gritar mais ou menos. Nem se o tal Consórcio disser que não pode assistir jogo em pé, isso ou aquilo. Existe algo mais forte, mais poderoso, que é a cultura do torcedor.
O Maracanã voltou, e ainda bem que voltou.
Está de volta, novinho em folha e servindo para sua eterna missão: desnudar preconceito, recalque e pequenez.