Somos constantemente desafiados a encontrar motivos que ratifiquem nossa crença na vida, ignorando o abatimento que embrutece e paralisa; combatendo a melancolia, que na dose imprópria, deixa o céu nebuloso da hígida reflexão e avança ao pântano da dúvida imanente e ubíqua, acerca de qualquer um e em qualquer parte; dobrando o que nos tenta fazer renunciar ao sonho de dias menos sombrios e gente mais risonha, o ideal mais elementar e mais cheio de ardis que se pode querer. Num só movimento, viver torna-se uma cornucópia de luzes e sombras que se atraem e se repelem, e se equivalem; subidas e descidas bruscas, repentinas, nauseantes, como num brinquedo macabro; entradas e saídas de labirintos claustrofóbicos que ficam tanto mais estreitos na proporção em que nos deparamos com nossas humanas limitações, agudizando a impressão de que no espírito do homem há mesmo lugar para todos os sonhos, mas nele encrustam-se igualmente muitas das côdeas que enxovalham o mundo para muito além da vã filosofia deste plano tão rasteiro.
Nascemos mergulhados em traumas muito particulares, guardados no mais secreto de cada um, sufocados por incertezas de toda ordem, dilemas existenciais cujo peso só nós mesmos podemos sentir, e isso já seria o bastante para tachar o homo sapiens como a mais desgraçada das espécies. Urge ao infeliz do gênero humano que o avalizem quanto ao que ele é ou deixa de ser, e essa é outra catástrofe irremediável do ser gente. As grandes transformações sociais começam dentro do indivíduo, daí não ser viável, à luz do pensamento de gênios como Arthur Schopenhauer (1788-1860) uma pretensa salvação do homem. No clássico “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o filósofo, um dos pensadores que se celebrizaram pelo pessimismo, ao lado do dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) e do também alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) —, prega que a verdade está sempre cercada da ideia do que julgamos como verdadeiro, e, em assim sendo, somos incapazes de discernir o certo do errado, o que, por turno, interdita ao ser humano a felicidade. Na mais rosicler das hipóteses, podemos arranjar nossa própria redenção, mediante a confissão de nossos desvios e, claro, o arrependimento sincero que coroa a jornada.
Nos cinco títulos da lista que compusemos, percebe-se uma medida da trindade nada santa do niilismo filosófico, bem como a necessidade vital de pegar pelos chifres o destino e a atávica sanha de vencer a miséria, de dar cabo da submissão de que se nutre a injustiça e proclamar-se, enfim, livre. Aoy, a garota devotada a seu talento com cutelos, facas e woks primorosamente lustrados, enfrenta outro dos grandes desafios de sua vida na cozinha de um restaurante fino, a própria encarnação da tirania. “Fome de Sucesso”, drama do tailandês Sitisiri Mongkolsiri, inspira no assinante da Netflix a mesma fúria da personagem de Aokbab — que resigna-se a caprichos de um chef psicótico, visando a metas de ascensão social (que não alcança) — justamente porque todos nos reconhecemos em sua pele num ou noutro momento da vida. Os outros quatro longas, todos lançados em 2023, também versam nessa toada e, dispostos em ordem alfabética, ratificam a Netflix como uma das plataformas de streaming mais diversas do mercado.
À medida que “Agente Infiltrado” avança, mais nítida se torna a sensação de que já se sabe onde vai dar o filme de Morgan S. Dalibert. A vasta experiência do diretor em enredos que fundem ação, suspense e trapalhadas de uma polícia ora corrupta, ora bem-intencionada, mas perdida num sem-fim de necessidades jamais satisfeitas e às voltas com facções criminosas cada vez mais organizadas, renderam sequências capazes de manter o público numa expectativa quase perene, que só arrefece quando o número de cadáveres estendidos no chão supera qualquer chance de novas reviravoltas. É esse, contudo, o desafio de produções como “Agente Infiltrado”, que tem a seu desfavor abordagens ligeiras e pretensiosas sobre um tema sério e uma brusca mudança de rota no desfecho.
Várias analogias entre a ordem absoluta e absolutista de um espaço tido por sagrado por muitos, no radar permanente de jovens de todos os estratos sociais como um meio de vida aparentemente glamoroso, de onde tem-se a impressão de que o dinheiro jorra, são possíveis em “Fome de Sucesso”. O tailandês Sitisiri Mongkolsiri pinta a cozinha de um restaurante sofisticado como a própria encarnação da tirania, um ambiente em que a democracia, além de não ter vez, acaba tornando-se um método contraproducente. Neste trabalho, Mongkolsiri não faz nada de muito inovador, tampouco revolucionário, uma vez que, sob um ou outro viés, inúmeros filmes orbitam nesse universo. O que deixa a história levada em “Fome de Sucesso” ainda mais saborosa.
Pelo amanhecer lúgubre em tons profundos de azul no subúrbio tranquilo de Linton, Indiana, no centro-oeste americano, não se pode conhecer direito o que uma casa de padrão médio tem de extraordinário. Assim começa “A Mãe”, uma história sobre a maior aventura a que alguém pode se lançar, e com a qual se concorda quando fica implícito o argumento de que há sempre uma vasta chance de tornar um pouco mais elástica a fronteira do que se pode tolerar pelos filhos. A mãe a que o título do filme da neozelandesa Niki Caro refere-se não abdica de uma carreira duvidosa — e ainda que não o fizesse, não adiantaria muito —, mas aceita com alguma resignação o destino de virar uma exilada em sua própria vida, pária a reboque do que deliberam sem sua licença, e, pior, trânsfuga de confrontos em que é implicada sem querer. Caro sai de um ponto bastante genérico até aproximar-se, lentamente, do objeto de seu trabalho, qual seja, o laço desfeito de duas pessoas que não deveriam separar-se, momento em que o cerco se fecha incontornavelmente.
A vida é um mistério e o amor talvez seja o que há de mais inexplicável no mistério da vida. Em “Royalteen: Princess Margrethe”, a norueguesa Ingvild Søderlind acompanha sua protagonista emulando histórias que plebeus conhecem bem: a da herdeira de uma casa real decidida a não mais submeter-se ao escrutínio de seus pares e viver como uma garota comum, enfrentando inseguranças, medos, perseguições de colegas e de fotógrafos abelhudos e a lenta descoberta do amor. Margrethe, composição escrupulosa de Elli Rhiannon Müller Osborne, experimenta do veneno que destilara em “Royalteen” (2022), de Emilie Beck e Per-Olav Sørensen, ao tentar viver sob os próprios auspícios e dando asas a seus desejos, e, destarte, a premissa de conflitos familiares bastante idiossincrásicos — de gente que dispõe de todos os privilégios que alguém pode querer, mas conclui ser assombrosamente infeliz — permanece na mira do filme de Søderlind, cujo roteiro, de Sørensen, Ester Schartum-Hansen e Marta Huglen Revheim, é uma adaptação arrojada, mas fiel do romance teen de mesmo nome de Randi Fuglehaug e Anne Gunn Halvorsen.
Existem infinitas maneiras de se abarcar conflitos familiares, e a escolhida por Luis Estrada em “Viva o México!” tem qualidades que revelam-se cada qual a seu tempo. Dispondo de um talento raro para levar histórias que nunca se rendem ao óbvio, Estrada faz do roteiro, assinado com Jaime Sampietro, um passeio por boa parte dos temas que consegue desembaraçar tão bem em “O Inferno” (2010) e “A Ditadura Perfeita” (2014), a ponto de restar subentendido que compõem uma trilogia acerca das misérias de uma terra tão longe de Deus e tão próxima dos Estados Unidos, sentença atribuída a Porfirio Díaz Mori (1830-1915), presidente mexicano de 1º de dezembro de 1884 a 25 de maio de 1911, e repetida por uma personagem no desfecho. Marcas do filme, o humor ácido, a zombaria incansável, as subtramas que rompem a casca do absurdo e tomam a narrativa do jeito mais desapertado, com uma plêiade de atores assombrosamente certos do que estão a fazer, são detalhes que compõem um todo como não se tem visto com frequência no cinema atual, dando a sensação ambígua de que ainda há alguma esperança de se encontrar ouro em meio a tanto plástico descartável, mesmo que quem o procure seja a minoria.