Além de Maradona e Ricardo Piglia, a Argentina também revelou para o mundo, nos anos 1980, um número de expressivo de músicos. Artistas solo (Charly Garcia, Spinetta) e grupos (Soda Stereo, Sumo, Los Fabulosos Cadillacs) atravessaram as fronteiras do país, tornando-se conhecidos e admirados. De todos eles, um em especial manteve uma relação forte com o Brasil: Fito Páez, cuja trajetória pessoal e artística é contada na série de ficção “Amor e Música” (2023), da Netflix, em oito episódios.
É de Fito Páez a canção “Trac-trac”, gravada pelos Paralamas do Sucesso. Ele cantou uma versão em espanhol de “Go back”, num disco ao vivo dos Titãs. Numa das sequências centrais de “Amor e Música”, o cantor argentino está em um show no Rio de Janeiro e recebe a notícia mais traumática de sua vida. Há ainda citações fartas na série a respeito da admiração por Tom Jobim e a bossa nova, que faziam parte do cotidiano de sua casa familiar na cidade de Rosário, próxima a Bueno Aires.
Uma das caraterísticas mais relevantes da série é evitar uma contextualização excessiva do tempo histórico. De saída, no primeiro episódio, é mostrado o personagem Fito (interpretado por Ivan Hochman de forma brilhante) fugindo da polícia nos anos mais duros da ditadura argentina. A partir desse momento, a memória recriada e a ficção parecem dar o tom, com inúmeros momentos de lirismo sobre a infância do protagonista e os primeiros encontros com os demais monstros do rock argentino.
Há três eixos que guiam a série: a relação de Fito com seu pai, as relações amorosas com suas duas primeiras esposas e a admiração por músicos que inspiraram sua obra. E um fio condutor é um luto permanente, as perdas constantes de pessoas muito próximas a ele, sobretudo a mãe Margarita, que morreu quando ele nem tinha um ano de idade. O nome Fito vem do apelido Rodolfito, uma vez que Rodolfo é o pai viúvo. A casa dos Páez é um museu de relíquias, a começar pelo piano da sala de visitas.
Ficção biográfica
O quarto episódio “Um céu e um coma” é uma peça de ficção muito bem construída, intercalando o Fito criança e o músico que tentava se firmar no mundo artístico. É nesse momento que ganha uma dimensão maior a figura de seu pai. Aquele homem que perdeu a esposa muito cedo, levava toda semana o filho para uma loja de discos e, finalmente, entrega a chave do piano da casa para o menino. Ninguém como os argentinos sabe fazer tão bem o trabalho de luto e pensar traumas pessoais e coletivos.
Em outro eixo, a série reconhece a centralidade das esposas de Fito para sua trajetória. É outro tipo de amor em cena. A primeira delas foi Fabiana Cantillo, para quem ele escreveu a canção extraordinária “Fue amor”. O casal viveu os excessos de drogas e álcool típicos dos anos 1980, numa Argentina em eterna crise. A segunda é Cecilia Roth, atriz famosa pelos filmes de Pedro Almodóvar e que foi a musa para a grande música “El amor después del amor” (título original da série da Netflix em espanhol).
A terceira declaração de amor está endereçada a Charly Garcia e Luis Alberto Spinetta (este já falecido). Ambos são gênios absolutos do rock produzido a partir dos anos 1970. Suas trajetórias podem ser conhecidas nas séries documentais “Quebra Tudo: a História do Rock na América Latina” (2020), da Netflix, e os episódios de “Bios — Vidas que Marcaram a Sua”, no catálogo da Star+ e que contam as vidas de Charly e Spinetta. São convites para o público brasileiro conhecer mais uma música de altíssima qualidade.