Remorsos brotam da lembrança como flores num jardim de cemitério, nutridos por arcaicíssimas mágoas, cujo poder sobre o destino de uma pessoa ninguém sabe mensurar ao certo. “Já Era Hora” castiga os costumes brincando com um dos aspectos mais fundamentais e mais negligenciados da vida, nossa ideia, tão equivocada quanto frágil, do que significa viver, a tola prepotência do homem quanto a achar que o sobe e desce dos ponteiros, a passagem dos dias, a marcha silenciosa e constante dos anos, deveria esperar por nós, ou, quando menos, teria de mostrar-se pouco mais indulgente, um tanto mais lhana, um bocado mais grata, sendo que nunca manifestou para conosco nenhuma dependência, jamais nos propôs acordo de nenhuma espécie, muito pelo contrário: somos nós quem lhe temos obrigações e estamos inexpugnavelmente perdidos sobre o que esperar da vida, nunca menos que sobranceira, e, principalmente, da morte, sempre indesejada.
O protagonista do filme do italiano Alessandro Aronadio experimenta tempos caóticos — malgrado o tempo por si só não seja caótico, fluido ou inconstante, apenas o tempo; o tempo apenas existe, o tempo apenas é. O diretor pinça de seu roteiro, escrito com Renato Sannio, imagens um tanto óbvias, como a contagem regressiva num baile de Ano-Novo, ou o tique-taque de um relógio, a fim gravar no público a curiosidade quanto ao mote central, que se deslinda sem pressa. Logo se tem claro que Dante, vivido por Edoardo Leo, é um homem cercado. Seus aniversários transcorrem sempre do mesmo jeito atabalhoado e melancólico, sem um respiro para o café da manhã com as panquecas da mulher, Alice, de Barbara Ronchi, ou abraços demorados em Galadriel — blague metalinguística um tanto desnecessária —, a filha dos dois, que cresce a despeito dos rogos do pai ausente, embora amoroso. No fim do dia, Alice prepara uma festa para a menina, a qual ele tenta comparecer. Por ter ficado até mais tarde no escritório, o engarrafamento de uma avenida cheia de outros carros, dirigidos por outros motoristas afoitos e também esmagados pelos planos que nunca se realizam, lhe impõe mais uma falta, e nesse momento, Aronadio passa a ser mais específico no que toca ao calvário de seu anti-herói.
Resta inescapável uma alusão a “A Divina Comédia” (1320), de Dante Alighieri (1265-1321), homenagem talvez involuntária, até meio ligeira, porém evidente. O personagem de Leo experimenta o tormento de não ter mais nem o mínimo controle de que todos dispomos sobre o que fazemos — e, principalmente, sobre o que não fazemos —, decerto uma das mais intoleráveis agruras a que alguém é forçado a se sujeitar. “Feitiço do Tempo” (1993), levado à tela por Harold Ramis (1944-2014), é outra das referências que vem à memória, uma vez que como Phil, o desditado meteorologista de Bill Murray, fica preso no mesmo dia por anos, assistindo de camarote ao naufrágio de seu casamento em contraposição ao sucesso profissional (ao menos isso), prostrada frente àquele movimento tão particular da vida, sem muita explicação, mas sábio em igual medida, que todos nos flagramos a criticar em muitas ocasiões. As guinadas do filme nem são precisamente reviravoltas, já que se espera por elas como se espera pelas respostas que a vida não tem, mas que a morte trata de nos dar sem que lhe peçamos.
A forma como Aronadio vê a existência e o cessar de tudo, ressignificando o que por muito tempo consideráramos uma parte de nossa própria natureza — livramento com que nos regala a vida aos quarenta anos, pouco antes, pouco depois —, faz de “Já Era Hora” uma experiência sublime, quase transcendental.
Filme: Já Era Hora
Direção: Alessandro Aronadio
Ano: 2022
Gêneros: Comédia romântica
Nota: 8/10