Ainda há incontáveis episódios sobre os quais pouco se sabe — ou sobre os quais não se sabe o que se deveria saber — envolvendo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O drama britânico “Munique: No Limite da Guerra”, adaptação do romance homônimo de Robert Harris, traz ao centro do palco dois diplomatas, ex-amigos em lados adversários das batalhas, um representante do Eixo, o outro, dos Aliados. O alemão Christian Schwochow parte da relação entre os personagens a fim de mostrar os desdobramentos da conferência de Munique, em 1938, e o acordo de paz entre Alemanha e Inglaterra que poderia ter nascido da iniciativa, mas restou frustrado.
Charmoso, como grande dos filmes que retratam os bastidores de conflitos armados pelos salões suntuosos de palácios ao redor do mundo, o trabalho de Schwochow joga luz sobre questões básicas para se entender o que levou à eclosão de mais uma série de enfrentamentos entre povos, muito mais devastadores que os encerrados vinte anos antes. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Grande Guerra, fora a grande responsável por ratificar a hegemonia americana, e os Estados Unidos se firmaram como a maior potência bélico-econômica do mundo desde então. Em 1917, a participação efetiva da América, afinada com Inglaterra e França, foi decisiva para a vitória da Entente, composta por esses três países e autora da proeza de render italianos e alemães, desprevenidos e cansados ao termo de três anos de combate. Em 1939, Itália e Alemanha estavam prontas para dar o troco, cada uma liderada por seu facínora. Adolf Hitler (1889-1945), pelo lado germânico, e Benito Mussolini (1883-1945), comandando as tropas italianas, já mergulhavam o planeta em mais seis anos de caos. Não há no longa o desejo de se esconder os jovens que foram coisificados, seviciados e mortos pelos nazistas, mas o pano de fundo de esperança no roteiro de Ben Power chega a intrigar.
Não é exagero dizer que aqueles eram outros tempos, que moldavam outras vidas. No flashback que dá azo à introdução de “Munique: No Limite da Guerra”, três jovens estudantes da Universidade de Oxford celebram a vida numa festa regada a muito champanhe e ornada por shows pirotécnicos, retrato de uma geração meio perdida, alienada, mas feliz, sem guerras a combater e sem alvoroço para resolver que caminho tomar. Seis anos depois, em Londres, Paul von Hartmann, o personagem de Jannis Niewöhner, é um alemão que se vangloria de sua origem; inicialmente, esse autodeclamado amor por sua identidade tedesca passa ao largo das atenções do amigo Hugh, de George MacKay, e de sua então namorada Lenya, vivida por Liv Lisa Fries. Mas Paul, um dedicado funcionário do Serviço de Relações Exteriores da Alemanha, tem a ambição de conhecer Hitler, mostrar-se útil ao Führer, auxiliá-lo no que ele precisar. Hugh, por seu turno, é o secretário do ministro das Relações Exteriores britânico, o que implica estar a par de detalhes acerca da política internacional do Reino Unido para com outras nações, manter um bom relacionamento com seus superiores e, quando necessário, oferecer a expertise adquirida em Oxford sob a forma de conselhos ao premiê Neville Chamberlain (1869-1940), principalmente sobre como lidar com o ditador da Alemanha, cuja avidez por poder não conhece limites.
Quase todas as reviravoltas do filme desapontam o que o espectador queria da história, o que acaba se revelando positivo. As cenas que registram a convivência de Hugh e Chamberlain são sempre carregadas de tensão, que a experiência de Jeremy Irons como o primeiro-ministro britânico sabe valorizar. Nos momentos em que o personagem de MacKay tenta municiá-lo de informações sobre a guerra, o que inclui um documento sigiloso que conjectura sobre para que direção o conflito deve seguir, o público entende um pouco mais a insânia que se desenrola. O encontro entre Chamberlain e Hitler, uma composição esmerada de Ulrich Matthes — ainda que o physique du rôle de Matthes seja muito diferente da figura real do tirano —, a que também compareceram Mussolini e Édouard Daladier (1884-1970) chefe de Estado da França, dá a dimensão histórica do que cada uma dessas personalidades viera a representar para sua respectiva gente. Mesmo dono de uma natureza monstruosa, era inegável a habilidade de Hitler em contornar situações à primeira vista inexpugnáveis, mas que se tornaram pouco mais que uma brincadeira dado seu talento de parecer o que não era. Por outro lado, Chamberlain, a quem Winston Churchill (1874-1965) dedicara a frase sobre se querer preservar a paz a todo custo, perdendo-se a honra — e tendo por brinde a guerra —, entrou para a história como um político inepto, um homem covarde e um líder que não sabia liderar. Neville Chamberlain foi obrigado a abandonar o governo do Reino Unido, em maio de 1940, e morreu de câncer no intestino seis meses depois, em 9 de novembro daquele ano, abrindo caminho para a volta de Churchill.
“Munique: No Limite da Guerra” faz mais do que motivar a audiência a refletir sobre as causas e efeitos da guerra. Valendo-se de recursos de lírica beleza como só no cinema é possível, Christian Schwochow derrama sua profissão de fé na humanidade sobre o público. Filmes sobre guerra têm, em geral, duas alternativas: ou dão preferência à ação, evidenciando a truculência óbvia dos combates, ou, ao contrário, permanecem junto com quem assiste, como se tentando adivinhar os próximos passos da história. E esse é um exercício apenas para quem se permite desafiar a si mesmo e suas mais robustas convicções.
Filme: Munique: No Limite da Guerra
Direção: Christian Schwochow
Ano: 2021
Gênero: Drama/Suspense/Guerra
Nota: 9/10