Filme com Michelle Pfeiffer, na Netflix, vai te deixar sem chão

Filme com Michelle Pfeiffer, na Netflix, vai te deixar sem chão

Mudanças chegam à revelia de nossas preocupações e anseios, e com elas um torvelinho de situações imprevistas se anuncia. “Nas Profundezas do Mar Sem Fim” encerra primeiro a dor inestimável de um casal e seus filhos lidando com a dor de uma ausência, e quando tudo parece encaminhar-se para a resiliência ou para acomodação, como um espinho que nunca deixa de magoar a carne, mas acaba por fundir-se a ela, dando origem a um novo organismo, uma descoberta involuntária lança por terra quaisquer certezas. Ulu Grosbard (1929-2012) sabia como poucos dar vazão a sentimentos os mais avassaladores por saber de que maneira e, o que importa de fato, em que medida emoções discrepantes à primeira vista se integram, forjando a vida a seu arbítrio, sem pena de reabrir velhas chagas e cavar úlceras ainda mais incômodas.

O roteirista Stephen Schiff reproduz o cotidiano de uma típica família americana de Madison, Wisconsin, no nordeste dos Estados Unidos, feliz, ou ao menos livre de grandes sobressaltos, com direito ao tão simbólico utilitário na garagem e crianças que brincam dentro de uma casa em ordem. As imagens borradas que descortinam a primeira cena sugerem um tempo muito mais distante do que o ano de 1988, a sensação com que todos nos defrontamos quando acossados por recordações, até — ou principalmente — pelas venturosas. Beth Cappadora, a mãe-mártir do romance de Jacquelyn Mitchard, adaptado por Schiff, prepara-se para a reunião dos formandos da turma de quinze anos atrás, e nesse momento, pequenas minudências, invisíveis a olho nu, começam a apontar para possíveis descompassos na vida conjugal da protagonista, encarnada num tom entre o comedido e o tedioso por Michelle Pfeiffer. Schiff não define a razão pela qual Beth, ainda tentando estabelecer-se como fotógrafa depois de sucessivas gravidezes, tem de levar consigo os três filhos, se poderiam ter ficado com a babá, que os acompanha ao evento, em casa, e também não se sabe ao certo o que pode ter impedido Pat, o pai, de Treat Williams, de assistir as crianças. Esses ruídos na história, quiçá propositais, mas desnecessários, não conseguem transferir ao mote central do filme, o sumiço de Ben, o filho do meio, que desaparece num salão lotado. Tampouco a entrada em cena de Candy Bliss, a detetive de Whoopi Goldberg — que por algum motivo igualmente secreto revela ser gay num dos momentos em que os piores instintos de todos quantos são abalroados por aquela tragédia sem nexo ameaçam vir à superfície — confere qualquer peso dramático às mais de duas horas do longa.

“Nas Profundezas do Mar Sem Fim” — cujo título, uma tradução fiel do original não tem relação nenhuma com o que é mostrado —, torna-se apetecível já na metade do segundo ato, com as performances tocantes de John Kapelos na pele de George Karras, o homem que Ben, criado como Sam, aprendera a chamar de pai, e do próprio Sam, nove anos mais velho, numa adolescência ainda mais perturbada com o que descobre sobre si mesmo. Ryan Merriman é, de longe, a melhor coisa aqui; o número de sirtaki, a dança grega que puxa, num dos raros lances coesos do filme, arranca uma ou outra lágrima do espectador mais sentimental.


Filme: Nas Profundezas do Mar Sem Fim
Direção: Ulu Grosbard
Ano: 1999
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 8/10