Tá decidido! É decreto, é resolução. Tem mandado expedido sob determinação do juiz da primeira vara dos corações falidos. É assim: se for me esquecer, esqueça-me bem devagarinho. Não arranque minha imagem aí de dentro logo pela manhã. Espera, vai. É só o tempo de organizar as coisas por aqui. Tá uma bagunça só! Têm pensamentos seus espalhados pra todo lado. Em cima da cama, no chão da sala, no caminho até o trabalho, nas canções do rádio. Você se deixou por toda parte. Quanto esquecimento!
É injusta a luta que travamos para esquecer alguém. A gente implora aos céus, ajoelha, reza, faz promessa, e no fim, percebe que não há mandinga capaz de rechaçar o inquilino mal-vindo do peito. De um lado o real te convence de que é preciso desabrigar o sujeito, enquanto do outro, o coração se esquece de esquecer. Segue teimoso, desavisado, sem se dar conta de qualquer faísca de razão. E lá vem a lembrança a nos confundir a percepção uma e tantas outras vezes. Ora dolorida, ora colorida, ora preta e branca, lembranças insistentes são como bumerangues que resolvem por si só volver.
Mas olha, não me esqueça assim tão depressa. Calma lá. É que antes vou divertir minhas horas. Colocar as memórias pra girar na roda-gigante, ou quem sabe, matá-las de medo na montanha-russa. Então peraí! Antes que me esqueça, preciso dar asas ao relógio, pra fazer esse tempo em solidão voar. Organizar as gavetas das lembranças, é que a cabeça está virada, sabe? Aliás, preciso de uma cabeça nova e de trocar as fechaduras da casa, preciso ficar só — segura com a solidão e todos esses pensamentos inoportunos.
Toma aqui seu Neruda, eu nunca li mesmo. Sim, vou trocar seus retratos, deslembrar dos beijos e de todos os abraços. E veja bem, se me esqueceres bem devagarinho, ainda terei essa noite pra tomar providências engarrafadas e escutar umas músicas-fossa por aí. Ou mesmo sair para uma bebedeira com os poemas do Bukowski na balada do meu quarto. Acho mesmo que preciso aceitar a prescrição Buarquiana e chorar, até ficar com dó de mim. Depois, tomar um calmante, um excitante ou um bocado de gim. Preciso de um café, de vários chocolates, de um amigo ou de um cachorro.
Esquecer é deslocar a dor para o desconhecido, é mandar a memória indesejada passear. Esquecer pode ser a virtude de quem decide seguir em frente. Não, eu não vou morrer por sofrer de amor. Até lá, está decidido, vou te esquecer primeiro. E depois, a gente acaba se ajeitando no passo da próxima novidade, das outras alegrias, dirigindo a si mesmo para acompanhar o tique-taque da vida. Por isso, já pode me esquecer, sei lá que horas, mas me esqueça com a doçura de uma leve brisa que passou e te tragou todas as lembranças para sempre. E fim…