Último dia para ver na Netflix: filme com canibalismo conta uma das histórias reais mais perturbadoras do cinema Divulgação / Touchstone Pictures

Último dia para ver na Netflix: filme com canibalismo conta uma das histórias reais mais perturbadoras do cinema

A vida é, decerto, o maior presente com que nos regala a Providência. Ninguém pode dizer com absoluta convicção por que chegou ao caos deste plano, conjugando sua alma vinda de uma dimensão ainda mais etérea que o além-túmulo a um corpo que começa a tomar forma depois de uma competição hercúlea, na qual de milhões de pequeninas estruturas, todas capazes de gerar a nova criatura a desfrutar do aconchego do útero, uma única é encarregada de catalisar os mistérios da concepção e levar adiante a mágica do existir, esse enigma místico e fascinante. Por mais infinita a tristeza no decorrer de uma jornada que pode ser efêmera como o vento no começo de uma tarde quente, a prenunciar a indefectível tormenta de pouco depois, a quase ninguém parece razoável abdicar da vida, e mesmo os infelizes que optam por essa solução extrema para males sempre passageiros — porque a vida mesma é transitória — o fazem sabedores de que estão incorrendo no pior dos equívocos, qualquer que seja a perspectiva de que se prefira lançar mão, religiosa ou secular, enfeitada com a retórica afetada da filosofia ou resvalando no barro duro e seco do pragmatismo mais vulgar. A despeito da abordagem, o que ninguém discorda é que a vida constitui um valor em si e, em sendo dessa forma, ninguém quer ser alijado desse bem tão precioso. Mas há um limite nas coisas.

Malgrado seja, sim, o que o homem pode ter de mais importante, a vida precisa ter seu peso definido depois de comparado aos dos outros tesouros dos quais não pode ser apartada, sob pena de fazer ainda menos sentido. Como todas as outras instâncias que permeiam a existência humana, a vida nunca foi um apanhado de circunstâncias e seus desdobramentos apreciados de modo absoluto, sem a intermediação de incontáveis pontos de vista acerca do mesmo tema, e eis a sua maior graça. Salvar a própria pele é nada mais que asquerosa covardia em cenários muito específicos, e um pacto com entes malignos, condescendendo-se com seus métodos plenos de crueldade e ignomínia, embalados pelo horror da barbárie.

“Vivos” (1993) é um dos filmes que mais fomenta questionamentos filosóficos sobre assuntos tão delicados quanto urgentes para todo indivíduo, por mais que se proponha a registrar um evento pontual, único para um grupo de pessoas que partilham de um momento de grande desdita. Conhecido por chefiar a produção de genuínas epopeias do cinema, entre as quais os trabalhos mais delirantemente complexos de Steven Spielberg, Frank Marshall vai muito além da estética para impressionar e fisgar o espectador. Tudo no visual de seu longa hipnotiza pela megalomania, que sem o cuidado do diretor não seria mais que vazia pretensão; contudo, o que mesmeriza, em sentidos opostos e complementares, é o jeito encontrado por Marshall para deslindar o argumento central de seu filme, cuja natureza de legítima polêmica ele, sem dúvida, pressentiu desde logo.

Esta é uma daquelas histórias muito mais afetas à fantasia, quiçá ao delírio, que à vida real, e justamente por essa razão ninguém se atreve a colocar em xeque a veracidade do que se assiste. O romancista Piers Paul Read já havia se debruçado sobre o conto de horror que descreve a agonia de 45 pessoas depois que o avião em que estavam vai de encontro a um maciço rochoso e cai na Cordilheira dos Andes, entre o Chile e a Argentina, voltando para o Uruguai, em pleno inverno. O roteiro de John Patrick Shanley esclarece que num primeiro momento, a maioria escapa da morte pelo choque, mas à medida que o tempo corre e os dias se sucedem, os cadáveres se multiplicam em progressão geométrica, ora fustigados pelo frio inclemente, ora em decorrência de ferimentos que gangrenam e evoluem para a infecção generalizada. Tudo isso apresentado sob um verniz de naturalidade estarrecedor.

Marcações na tela precisam a duração do tormento, mas certamente o público se atém pouco a ela. Marshall é competente em fazer com que a ideia do sofrimento e do martírio físico tornem-se de pronto uma das características mais absorventes em “Vivos”, e com a ajuda de truques de maquiagem e enquadramentos mais oblíquos, o espectador dá de barato que o grupo, a seleção de rúgbi uruguaia, padece mesmo das privações que os conduzem ao desespero lento e inevitável. O capitão Roberto Canessa, de Josh Hamilton, lidera os colegas e se faz uma voz altiva quanto a manter tudo sob o controle possível, mas é o Nando Parrado de Ethan Hawke — que parece ter mesmo emagrecido pelo menos uns cinco quilos entre um e o outro ato — quem toma a frente no momento mais delicado, repulsivo e indigno do filme. Para que consigam ou resgatar a bateria do rádio, perdida em algum lugar junto aos restos da cauda da aeronave, ou pedir ajuda num povoado qualquer encrustado nas lonjuras da montanha, precisam de energia, de proteína, de comida. Mas a única carne disponível é a dos mortos, soterrados pela neve que não para de cair.

Vira e mexe, o diretor põe na boca de seus personagens um discurso religioso que, respeitosamente, não convence frente à insânia que se apodera daquelas almas torturadas. É difícil, injusto, perverso julgar pessoas nessas condições, mas assistir a Nando e companhia refletirem sobre a hediondez do sacrilégio que estão prestes a cometer, e o cometerem assim mesmo, sem remorso ou pruridos morais, me deixou escandalizado. Certo, eles fizeram o que fizeram para ter alguma chance de se livrar daquele inferno em vida, mas a possibilidade de se condenarem irremediavelmente ao fogo eterno de satanás deveria tê-los freado. Esse filme me esteve à roda do pensamento nos últimos dias; refleti muito e digo, com toda franqueza, que eu não me arriscaria tanto, amparando-me nas sábias palavras de Marcos, ou no estoicismo de Zenão de Cítio (333 a.C – 263 a.C). Não é razoável voltar da morte às custas da própria salvação.


Filme: Vivos
Direção: Frank Marshall
Ano: 1993
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.