Em “Alerta Lobo”, o elemento de crítica a procedimentos que deveriam visar ao bem de uma nação aflora de um jeito sutil, mas nem por isso menos contundente, em especial no que toca à assuntos da caserna. Expostos a cenários de desgaste emocional, agravado pela necessidade de ofício de manter o respeito à hierarquia e às aparências, militares estão sempre sob o fogo cruzado da disciplina e da necessidade de imprimir alguma autenticidade a seu trabalho, tanto mais quando reparam que podem ser úteis de uma forma cujo alcance seus superiores não podem dimensionar.
Antes um mercado em que só americanos conseguiam entrar com os dois pés, filmes como os dirigidos pelo francês Antonin Baudry vão se tornando viáveis para profissionais de nacionalidades diversas. O roteiro de Baudry estende-se sobre as agonias próprias do trabalho milhas abaixo da superfície. O diretor-roteirista talvez já desse de barato que um enredo como esse não capturasse o espectador leigo de pronto, mas é o uso de tal argumento, inusitado, o que configura a subversão dos clichês e o feliz resultado é uma narrativa fluida, que por sua vez dispõe de um protagonista particularmente carismático a fim de se estabelecer a sequência de arcos dramáticos que se comunicam e emocionam.
Contando com orçamento de 23 milhões de dólares, vultoso para os padrões franceses, além de um elenco que justifica cada centavo, Baudry opta por começar sua história exaltando os esforços do capitão Grandchamp, vivido por Reda Kateb, e do imediato D’Orsi, de Omar Sy, para resgatar um grupamento que se perdeu no litoral sírio. A operação só pode ser bem-sucedida se os marujos forem capazes de seguir o plano de Grandchamp sem que as tropas da Síria consigam detectá-los, desafio ainda maior graças ao bombardeiro iraniano que se desloca junto ao submarino que abriga a equipe. Chanteraide, subalterno cujo dom do ouvido absoluto, do “ouvido de ouro”, é imprescindível a fim de distinguir transatlânticos de baleias, por exemplo, mostra-se fundamental quanto a poupar a tripulação de exposições desnecessárias, ao passo que pode potencializar os ataques, tudo sem que sejam notados. Numa composição inspirada, François Civil sabe desdobrar facetas importantes do personagem, guardadas até o meio do filme, e reveladas com o auxílio do envolvimento amoroso com Diane, interpretada por Paula Beer, folga romântica meio artificiosa, mas que emociona assim mesmo e se presta a tirar alguns dos véus meio sobre-humanos de cima de Chanteraide.
Narrativas que transportam o homem para ambientes aos quais não fora originalmente destinado, seja o céu, seja o mar, costumam elevar a potências inalcançáveis a sensação de que somos mesmo criaturas sujeitas à boa vontade da natureza para poder continuar existindo. Mas esse mal-estar é culpa nossa: é por querer dominar todo o mundo que nos cerca que a humanidade padece dessas reprimendas, às vezes severas demais, e sucumbe a uma ira que não pode controlar. Desde “O Encouraçado Potemkin” (1925), de Serguei Eisenstein, que incorpora a contestação sociopolítica com destemor, o relato de homens que cruzam o oceano movidos por um ideal — defender o território do país em que nasceram, garantir condições para o desenvolvimento de pesquisas, evitar guerras, mas também dar-lhes início, caso tal urgência sobreponha-se aos brandos tempos de paz — recebem ótimo acolhimento por parte da cultura pop.
Num determinado ponto, o filme é tragado por uma espiral de acontecimentos, numerosos e súbitos, que quase o sufoca, com direito à iminência de uma guerra nuclear que acarretaria prejuízos de longuíssimo prazo para a humanidade, quiçá definitivos. Elaborando essa possibilidade como alguém que já cruzou o outro lado da trincheira — Baudry se formou em engenharia e já foi diplomata —, o diretor repisa a importância da escala de comando para os militares, que põem Chanteraide na linha, com alguma dificuldade. Todo o tempo dividido entre sua natureza indomável, sem dúvida estimulada pelo talento que só ele tem, e sua vocação para o ofício que abraçara, o personagem de Civil deixa claro que por mais que o filme se permita levar pela atmosfera envolvente dos conflitos subaquáticos, o que se tem aqui é um drama de consciência, tratado com a dignidade e a perspicácia que um assunto tão complexo merece. Baudry usa a claustrofobia de uma dezena de homens aprisionados num cilindro de lata a mais de dois quilômetros abaixo da linha do oceano para revigorar, por instantes precisos, o sonho de liberdade, mas de uma liberdade muito mais ampla que só a do corpo — e de que apenas o rebelde Chanteraide, segundo se vê no desfecho de “Alerta Lobo”, chega perto.
Filme: Alerta Lobo
Direção: Antonin Baudry
Ano: 2019
Gênero: Drama/Guerra
Nota: 9/10