Digno de Oscar, obra-prima do cinema europeu foi aplaudida de pé nos cinemas e está na Netflix Caleb Deschanel / Sony Pictures Classics

Digno de Oscar, obra-prima do cinema europeu foi aplaudida de pé nos cinemas e está na Netflix

Uma das primeiras medidas de um sistema de governo autocrático é perseguir artistas e combater qualquer forma de manifestação que ouse afrontar o estabelecido, e tanto pior se nesses trabalhos encontra-se nesses trabalhos a gênese para transformações essas, sim, em tudo revolucionárias. Em “Nunca Deixe de Lembrar”, Florian Henckel von Donnersmarck alude a uma das bases do nazismo retrocedendo ao seu avesso. O alemão Florian Henckel von Donnersmarck ousa dar uma resposta que explique o injustificável, a fúria sanguinária de Adolf Hitler (1889-1945), jogando luz sobre um de seus aspectos devassando um de seus aspectos mais íntimos e que mais se perdem na bruma corrosiva do tempo.

Pintor frustrado, Hitler encontrou no desprezo à arte uma válvula de escape para muito de seu ressentimento contra a civilização, empenhando as maiores apostas numa pretensa inferioridade moral de quem ganhava seu sustento arrancando da vida a rara beleza que ela conseguia preservar. Sua arrogância megalômana era de tal ordem que, em 1937, o Partido Nazista organizou uma espécie de circuito somente com o que considerava adequado a sua ideologia macabra, e novos aspirantes a estetas, por óbvio, deveriam alinhar-se com as orientações ditadas pelo facínora.

A exposição foi inaugurada em Munique e não demorou a peregrinar por toda a Alemanha, promovendo ataques grosseiros e infundados a qualquer ideia que lhe parecesse arrojada, isto é, perigosamente chegada ao que o restante do mundo entendia como progresso: liberdade de expressão, democracia, economia de mercado e, claro, integração racial, valores dos quais a humanidade não pretendia abrir mão. A mão de ferro com que Hitler e seus subordinados conduziam medidas como essas trouxeram, dois anos depois, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) a reboque. O conflito se estenderia pelos seis anos seguintes, e lhe daria a ilusão de poder vingar o orgulho ariano, ferido desde que outros países da Europa, com destaque para a França, lhe abreviaram um bom naco da receita advinda com a indústria farmacêutica e a produção de automóveis.

Von Donnersmarck alude a essa passagem da História, deslocando os acontecimentos de Munique para Dresden. Na introdução, o garoto Kurt, vivido inicialmente por Cai Cohrs, visita a exposição em que o guia de Lars Eidinger debocha de ninguém menos que Picasso, Mondrian, Kandinsky, Paul Klee, George Grosz. Sua tia Elisabeth, a personagem de Saskia Rosendahl, é quem lhe deixa claro, ainda que não precise dizer uma palavra, o quão equivocado é tudo aquilo, uma mistura de despeito e valorização autorreferente, artificiosa e doentia, espetáculo bizarro, bem ao estilo do Führer, que deixava subentendido o que se poderia esperar do regime que se ia fazendo conhecer.

O diretor se inspirou na vida do alemão Gerhard Richter, talvez o maior pintor vivo, ainda em atividade. Nascido em 9 de fevereiro de 1932, Richter foi, como Kurt, tendo de se adaptar ao que o nazismo autorizava como digno de ser chamado de arte. O roteiro de Von Donnersmarck avança cerca de quatro décadas e o protagonista, assumido por Tom Schilling depois de adulto, continua submetendo-se a desmandos ideológicos mesmo após o ocaso da guerra, agora patrocinados pelos comunistas, difusores de uma excrescência chamada realismo socialista, que não deixava nada a dever ao nazismo em matéria de boçalidade e cerceamento à criação intelectual e estética.

Ao longo de pouco mais de três horas, essa “obra sem autor”, como se lê na tradução literal do título em alemão, destrincha cada conflito que se insinua no corpo do enredo sem afoiteza. Lembrando Tolstoi em clássicos da literatura mundial de todos os tempos, casos de “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Kariênina” (1878), o filme acompanha Kurt ao longo de seus muitos anos, definidos por outra Elisabeth além da tia, internada numa “unidade de esterilização” para tratar da maneira mais abrutalhada a esquizofrenia que se apossa dela sem pedir licença. Já um adulto jovem, Kurt vai morar em Berlim na intenção de graduar-se em artes — malgrado saiba que terá de se sujeitar às diretrizes comunistas —, e conhece Elisabeth Seeband, a Ellie.

Mesmo integrando a aristocracia tedesca e que Kurt não passe de um estudante despossuído, a mocinha de Paula Beer se entrega a ele, sem saber que o pai, o professor Carl, um dos maiores ginecologistas da Alemanha, tem uma carta na manga caso o caminho dos dois teime em se cruzar. Mas o personagem de Sebastian Koch não é propriamente modelo de virtude para ninguém.

“Nunca Deixe de Lembrar” é um filme caudaloso, repleto de sugestivas reflexões, mas se há uma ideia-força aqui, é a que reza que arte nenhuma deve se sujeitar ao pragmatismo de quem deseja fazê-la útil. A arte existe porque viver é muito pouco e isso basta. E Gerhard Richter continua a dizê-lo.


Filme: Nunca Deixe de Lembrar
Direção: Florian Henckel von Donnersmarck
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.