Meninas e meninos, reli “O Amor nos Tempos do Cólera”, do gênio Gabriel García Márquez, e confirmei minha primeira impressão: é melhor do que “Cem Anos de Solidão”. Obviamente, essa não é uma constatação das mais relevantes, considerando que são duas obras-primas. Mas vale um exercício de imaginação.
Discordo completamente de Cabrera Infante, quando declarou que “quem se interessa por Jorge Luis Borges, como eu, não poderia gostar de ‘Cem Anos de Solidão’. Eu rejeito a obra de García Márquez desde 1967, por considerá-la de um exotismo folclórico desnecessário”. Borges é meu escritor preferido e isso não me impede de ser admirador de García Márquez, embora não tenha intimidade suficiente para chamá-lo de Gabo. Passo longe da ojeriza de Gore Vidal, que admitiu que não o tolera: “Quando começa aquelas frases longas cheias de metáforas estufadas, começo a ficar impaciente”. Se as frases infinitas de Saramago e Proust não me afetam negativamente, as de García Márquez não poderiam. Tampouco tive a mesma sensação que Ferreira Gullar, que conta que foi “reler ‘Cem Anos de Solidão’ e tive uma decepção. De repente, me pareceu um livro superficial. Li umas 30, 40 páginas e nem fui adiante, em contraste com o encanto que li pela primeira vez. Acho García Márquez um grande escritor, não estou querendo desfazer. Estou falando honestamente: aconteceu”. Esse morde e assopra de Gullar é um erro inexplicável vindo de um leitor experiente como ele. Também reli “Cem Anos de Solidão” e o livro continua brilhante e segue sendo a maior obra do autor. A maior. Não a melhor. A melhor, reafirmo, é “O Amor nos Tempos do Cólera”.
Por quê? A resposta longa exigiria um livro do mesmo tamanho que “García Márquez: história de um deicídio”, tese de doutorado defendida por Mario Vargas Llosa na Universidad Complutense de Madrid, em 1971. Infelizmente, não temos esse espaço, não tenho esse fôlego e, suponho, você não tem paciência para tanto.
A resposta curta é a seguinte: em “O Amor nos Tempos do cólera”, García Márquez manteve tudo de encantador e original presente em “Cem Anos de Solidão”, somando à narrativa uma complexidade psicológica até então inédita. Suas criações deixaram de ser descritas como arquétipos representativos das múltiplas realidades sul-americanas, transformando-se em seres de carne e osso. “O amor nos Tempos do Cólera” é um dos estudos de personagens mais sofisticados da literatura do século 20.
Os dois livros abarcam longos períodos. Contudo, “Cem Anos de Solidão” é episódico e desigual, ao passo que o senso de conjunto e continuidade de “O Amor nos Tempos do Cólera” é impecável. Se o primeiro romance é uma saga de memória coletiva, o segundo é uma epopeia da vida íntima, da memória individual. “Cem Anos de Solidão” fascina pelo que apresenta de grande, de exótico, de exagerado; enquanto “O Amor nos Tempos do Cólera” triunfa pelo pequeno, pelo delicado, pelo não dito. Não que seja um enredo sem peripécias. Pelo contrário, mas esses acontecimentos se desdobram em um melancólico ritmo de espera.
Em “O Amor nos Tempos do Cólera”, numa narrativa sobre um amor interrompido e reconquistado muitas décadas depois, há mais solidão do que em “Cem Anos de Solidão”. Paradoxalmente, não existe no romance a sugestão de tempo perdido. Não. As vidas foram vividas. O que se avizinha no epílogo não é nem mesmo uma segunda chance. O que os sobreviventes do triangulo amoroso vivenciam é o recomeço do exato ponto onde pararam. Como se ganhassem de presente uma vida extra. São idosos? Pouco importa.
Se em “Cem Anos de Solidão”, García Márquez encontrou sua voz narrativa, em “O Amor nos Tempos do Cólera” ele alcançou o domínio completo de sua carpintaria literária. Relerei esse livro extraordinariamente belo até quando? “Toda a vida”.
Livro: O Amor nos Tempos do Cólera
Autor: Gabriel García Márquez
Tradução: Antonio Collado
Páginas: 429
Editora: Record
Nota: 10/10