Tão logo abre os olhos para o mundo, o homem principia uma caminhada ao incerto. Não somos senhores de ninguém nem de nada, nem de nossas próprias vidas, malgrado, por absurdo que soe, haja quem não só trate sua passagem pelo plano da matéria feito o cronograma de uma multinacional, sem margem alguma para deambulações de qualquer natureza, como dilata esse pérfido expediente às outras pessoas — mormente às mais frágeis, cuja alternativa mais judiciosa é mesmo submeter-se. Por óbvio, nem sempre esses grupos ditos minoritários conformam-se em ser tiranizados, e destarte nascem as flores do mal que revestem os campos de toda a Terra. O pensamento filosoficamente ordenado vem ao socorro da natureza humana, levando-a a absorver esses cenários que se nutrem do caos, e não se permitir intimidar com as trapaças do destino; por outro lado, a cada um cabe entender que suas atitudes, seus medos, angústias, dilemas e também suas glórias são uma responsabilidade que criatura alguma, deste mundo ou de qualquer outro, pode assumir em seu lugar, e que a estrada, por pedreguenta que seja, pode levar a uma parte em que a vida vá se lhe revelar em sua esfera mais misteriosa, de onde ele poderá tirar muitas das lições que lhe faltam para seguir em harmonia.
À medida que os anos se sucedem e o tempo passa para não mais voltar, mais nítida se torna a impressão de que tudo converge para um fim irremediável e avassalador, de que ninguém consegue escapar. Não obstante, a teimosia que faz com que o ser humano drible a morte é a mesma que o lança num precipício de dúvidas que confundem-no e o aniquilam das maneiras mais perversas, quando teria sido muito mais producente, mais nobre e mais sábio que todos enxergássemos nossas diferenças, evidentemente, mas afinássemo-nos num igual propósito, uma vez que estamos no mesmo barco. O cinema lida com as diferenças entre as civilizações, entre as sociedades, entre as culturas e entre os indivíduos da forma que sabe, e quase sempre é necessário empenhar uma montanha de dinheiro no intuito de persuadir a audiência a crer no bom, no belo e no justo, sem garantia alguma de que vá conseguir. “Agente Oculto” (2022), a narrativa distópica dos irmãos Anthony e Joe Russo sobre malfeitos de quadros da CIA, o órgão que responde pela defesa do território americano contra ameaças exógenas, empata com “Alerta Vermelho”, levado à tela por Rawson Marshall Thurber também em 2022, que vibra na mesma frequência, mas falando de burocratas do FBI, a autarquia de proteção às instituições dos Estados Unidos: cada um investiu duzentos milhões de dólares (!) entre cachês, diárias de técnicos, aluguel de locações, as várias fases da produção e a distribuição final. Somados, ambos os orçamentos correspondem a quase o dobro do PIB das Ilhas Marshall, arquipélago no Pacífico oriental entre o Japão e a Austrália, que junta entre tudo quanto produz 249 milhões de dólares, ou cerca de sete vezes a soma das riquezas de Tuvalu, também na Oceania, com 63 milhões. A Bula reuniu essas e mais oito joias da coroa, todas na Netflix, dispostas da mais cara para a de estimativas mais, digamos, sóbrias, querendo que você também usufrua desse banquete regado a wagyu com crosta de ouro e caviar branco. Em meio à tamanha ostentação, quem se importa se jogarmos um pouquinho d’água no champanhe dos magnatas de Hollywood e indagarmos: precisava mesmo?
Atendendo pela alcunha de Sierra Six, “já que 007 não estava disponível”, Ryan Gosling dá vida ao espião cuja pena é abreviada por Donald Fitzroy, o alto burocrata interpretado por Billy Bob Thornton. Metendo os pés pelas mãos em alguma medida, Six já é solicitado para outro desafio por Denny Carmichael, seu novo superior, personagem de Regé-Jean Page: dar cabo de Lloyd Hansen, o ex-mercenário da CIA, hoje no setor privado, que anda se valendo de seus conhecimentos sobre a agência para vender informações sigilosas (mesmo que apenas faça supor que as tenha). A entrada em cena de Chris Evans se dá no momento exato em que o roteiro de Christopher Markus, Joe Russo e Stephen McFeely começava a correr o risco de derivar para um dos episódios de “Missão: Impossível” sem o pathos do Ethan Hunt de Tom Cruise. O cinismo de Hansen, temperado com lances inesperados como comentários homoeróticos sobre seu novo rival — o texto da tríade de roteiristas segue nesse diapasão até o encerramento, insinuando um possível romance dos dois num passado remoto —, baliza a história com trechos levemente cômicos, até que os confrontos entre os dois escalam um nível mais elevado, e Six terá de descobrir sozinho se seu desafeto tem mesmo poder o bastante para estremecer as relações dos Estados Unidos com outros países, uma vez que Carmichael não ficou vivo tempo suficiente para auxiliá-lo na tarefa.
“Alerta Vermelho” é a prova cabal de que não basta a uma plataforma de streaming atentar para os algoritmos dos campos de busca, a fim de saber o que deseja o respeitável público, botar muito dinheiro sobre a mesa, contratar o trio de protagonistas e um diretor que, à primeira vista, dariam conta do recado e, voilà, nasce um clássico — ou, ao menos, alguma coisa de que o público não vá se esquecer entre a última sequência e a subida do derradeiro crédito. No caso do filme do roteirista e diretor Rawson Marshall Thurber, a Netflix destinou US$ 200 milhões (cerca de R$ 1,1 bilhão) para colocar na praça a história de dois ladrões de antiguidades valiosas brincando de gato e rato, um deles fazendo um tipo grandalhão de bobo. Mais clichê, impossível. Para se ter uma ideia, “O Irlandês” (2019), filme-fetiche de Martin Scorsese, custou US$ 160 milhões, com a ressalva de ter quase hora e meia a mais de duração. Tudo parece ainda mais absurdo em se considerando que mais de um terço do orçamento integral de “Alerta Vermelho” foi empenhado nos salários do diretor e dos três astros, mas ainda que estes tenham seu charme, em maior ou menor proporção, não valem tudo isso.
Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda o envolvimento de Frank Sheeran, um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa. O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino, um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro. Conforme a trama se desenrola, o espectador acompanha a escalada do irlandês junto à quadrilha, sempre fiel a Bufalino, seu padrinho na vasta carreira de delinquências. Foi honrando a confiança que o chefão depositara nele que Sheeran pôde chegar tão longe, e em nome desse código de honra muito particular, comete as maiores baixezas, como matar Hoffa, outro homem-forte do submundo que também o tomara por protegido. Sheeran não resiste a uma ofensiva mais severa do FBI e cai, levando os peixes grandes todos consigo. Amarga alguns anos de cadeia e termina num asilo, onde o filme principia e acaba, recurso muito bem usado por Martin Scorsese, um mestre também em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de imprimir mais realismo aos enredos que defende. “O Irlandês” talvez seja a obra-máxima de Scorsese — até que venha a próxima.
O fim está próximo e ele vem do alto. Por trás de grandes sucessos do cinema, todos dotados de algum grau de cinismo e descrédito na humanidade, em “Não Olhe para Cima” Adam McKay apresenta a sua versão para o maior medo da humanidade — e grande alívio para alguns —: a iminência da morte. Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de seu filme suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não. A história tem todos os clichês de um filme-catástrofe, protagonizado por um cometa prestes a reduzir a Terra a escombros numa colisão estimada para dali a seis meses e 14 dias.
Apesar do disse-me-disse, “Esquadrão 6” (2019) foi muito além do que se esperava. O filme de Michael Bay mistura produções das franquias “Missão: Impossível” e “Velozes e Furiosos”, aludindo também a outras pérolas do gênero, ao passo que ainda reserva fôlego para elaborar suas próprias teorias políticas, um tanto vesanas, que se diga a verdade, mas nem por isso desprezíveis. Recursos como as sequências plenas de movimento, tiros e perseguições automobilísticas, bem como as mulheres bonitas pipocando aqui e ali na tela, estabelecem um sentido demasiado humano a um enredo tão naturalmente árido, fruto do roteiro de destacada técnica de Paul Wernick e Rhett Reese. As piadas do filme resvalam no mau gosto, assuntos que deveriam ser tomados a sério sofrem um bombardeio de manobras galhofeiras e mesmo as ideias de tempo e espaço são submetidos a revisões conceituais. E tudo isso de caso pensado, para que se mantenha a atmosfera de ridículo do mote central, que avança sem pressa para a sátira sociopolítica, bem-feita, oportuna, precisa.
As operações de resgate de algum detalhe perdido na trajetória de um personagem messiânico, responsável por salvar a humanidade, impedir o nascimento de facínoras que comprovadamente ameaçaram a paz na Terra ou defender povos do extermínio iminente, cuja origem remonta a uma era aparentemente inalcançável, seriam a maior revolução já levada a cabo pelo gênero humano, e o cinema esboça como nenhuma outra manifestação artística a grandeza dessa efeméride, deixando claro ainda que isso poderia trazer problemas também. “O Projeto Adam” (2022) não acende de pronto. Shawn Levy, também diretor de “Free Guy: Assumindo o Controle” (2021), parece ter tomado gosto pelo assunto, muito competente ao desenvolver, com habilidade ímpar, o mote do tempo elástico, misturando ao eixo da narrativa, nos momentos cruciais, os elementos de crítica social e distopia de que o filme trata sem proselitismo dessa ou daquela natureza. Para Levy, que volta a fazer de Ryan Reynolds seu protagonista, a natureza humana não se livra jamais de seu caráter frágil, está todo o tempo a precisar de um salvador, de um redentor profano, que parece igualmente perturbado por tanta ignomínia.
Charlize Theron tem se notabilizado por defender com propriedade histórias plenas de ação que não dispensam um roteiro muito bem escrito, em que tudo acontece no devido momento, no lugar exato e pelas razões certas, haja visto seu desempenho em “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015) e “Atômica” (2017). O recurso da violência, empregado com justiça, torna-se nada mais que um trampolim para que o público alcance a complexidade da mensagem que se deseja levar à tela, conforme também se denota em “The Old Guard”. Andy, a personagem de Theron, e os companheiros formam um exército capaz de viver eternamente, se prestando à condição de mercenários século após século sem despertar a estranheza dos mortais, por serem dotados da mesma aparência que eles. A hegemonia da falange é colocada à prova, contudo, quando sabem que existe uma outra criatura que perdura infinitamente, tão expedita quanto eles no uso de armas e na prática de lutas e artes marciais, o que se não pode admitir, ou vão acabar reféns da adversária. Baseada na graphic novel popularizada graças às batalhas sangrentas, a versão cinematográfica de Gina Prince-Bythewood para “The Old Guard” é fiel aos quadrinhos ao mesmo tempo em que confere mais profundidade dramática ao argumento central da história que lhe deu origem.
“Resgate” parece saído do mesmo molde que as melhores histórias de super-heróis: personagens com papéis muito bem definidos na narrativa pegam-se cercados por um conflito quase insolúvel, em que o protagonista, dotado de qualidades para muito além das aptidões de um homem comum, conta com poderes para dirimir todo impasse. Entretanto, pouco há de glória para o personagem central do filme de Sam Hargrave, com um Chris Hemsworth estropiado, tentando já não responder à investida de seus obstinados agressores, mas só se manter vivo. A jornada de Tyler Rake ia se encaminhando de forma até bastante razoável ao longo de quase duas horas de projeção, mas alguma coisa desanda. O que poderia ter sido? O roteiro adaptado de Joe Russo, codiretor com o irmão, Anthony, de “Vingadores: Ultimato” (2019), parece ter a intenção de repensar a função dos candidatos a salvador do mundo nas tramas desfiadas pelo cinema. A aura de benfeitor atribuída a Rake pelos Russo incomoda, uma vez que o antimocinho de Hemsworth, mundialmente famoso na pele de Thor, o deus dos trovões na mitologia nórdica, e tão convincente que arrebatou uma franquia para chamar de sua, não é nada além de um mercenário, muito bem treinado para agir em situações de alto risco, imune a qualquer possível interferência externa e com problemas severos quanto a administrar seu apurado gosto por drogas, legais e ilegais.
“Operação Fronteira” apresenta cinco anti-heróis que atropelam princípios morais a fim de garantir que suas famílias deixem de passar necessidade, o que lhes implica várias situações, essas, sim, de fato aviltantes, como sói acontecer em quase todos os filmes de ação. Em que pese essa urgência de tipos desabridamente malditos, lutando por alguma mínima probabilidade de sobrevivência para si e para os seus, J.C. Chandor, coautor do roteiro com Mark Boal, vencedor do Oscar por “Guerra ao Terror” (2008), dirigido por Kathryn Bigelow, adota um estilo destacadamente sofisticado a fim de, primeiro, sugerir a ambivalência moral de seus protagonistas para, de pouco em pouco, fazer da deformidade ética deles o capital que não vai redimi-los, mas chega bem perto. Em meio a tramas plenas de reviravoltas que se desenrolam em ambientes conflagrados, com personagens ou fomentando discussões, brigas e trocas de tiro ou tentando a todo custo se livrar delas, o diretor saca perspectivas inesperadas para um tema aparentemente arcaico e sem margem para maiores apreciações, vencendo a regra tácita e absurda de reproduzir o arquétipo de figuras que não raro orbitam entre a santidade de heróis abnegados e pios, cuja maior aspiração na vida é o bem da humanidade, e espíritos anômalos, disformes, que só se realizam na desgraça, sua e de terceiros, porque habituados de um modo doentio à indigência emocional.
“A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, dirigido e escrito por Michael Rianda e Jeff Rowe, conhecidos pela série “Gravity Falls”, usa elementos de narrativa distópica a fim de contar como seria a dominação da Terra por dispositivos de inteligência artificial. Aqui, a humanidade depende de Katie Mitchell, uma nerd aspirante a cineasta, cheia dos conflitos típicos da idade, para se safar. Além de Katie, os Mitchell contam com Rick, o pai; Linda, a mãe; o irmão Aaron; e o pug Monchi, o mascote do clã. O filme é uma história divertida centrada na garota, meio perdida como todo adolescente, mas que acredita que quando se iniciarem as aulas na faculdade, na qual acaba de ingressar, vai finalmente se encontrar — e se enquadrar — no mundo. Rick é o típico paizão, provedor, que tem por hobby consertar coisas, mas não sabe por onde começar sua tentativa de arrumar a relação com Katie, ainda que seja visível o amor que têm um pelo outro. Rick vê na viagem para levar a filha à universidade uma chance de se acertarem de vez e decide cancelar o voo que havia reservado para irem todos de carro, num vibrante road movie.