Ganhador do Oscar e uma das mais belas histórias de amor da literatura e do cinema está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Ganhador do Oscar e uma das mais belas histórias de amor da literatura e do cinema está na Netflix

Talvez alguém já tenha se preocupado em desvendar o porquê dos romances de Jane Austen (1775-1817) suscitarem no público do século 21 emoções tão vívidas, mesmo que o mundo não pare de experimentar mudanças as mais severas, dos costumes ao ambiente corporativo, passando pela vida íntima das famílias, pelos relacionamentos amorosos e, claro, pelas convenções.

Publicado em 1811, “Razão e Sensibilidade” abre a trilogia em que Austen discorre sobre o amor em oposição às premências mais básicas da vida; com “Orgulho e Preconceito” (1813), a escritora ratifica seu anseio de especular acerca de valores ainda mais inescapáveis na Inglaterra de há duzentos anos, remexendo episódios abafados de uma família outrora influente, porém materialmente depauperada, cuja única grande chance de se reerguer está no matrimônio arranjado da primogênita com um homem rico, que aparentemente a deseja, mas que não consegue afastar a sombra da mãe superprotetora da donzela. “Persuasão” (1817), por sua vez, dá termo à obra literária e à vida de Austen, que morre em 18 de julho de 1817, aos 42 anos, vítima do mal de Addison, uma doença autoimune a respeito da qual nada se sabia duzentos anos atrás. Resta inacabado “Sanditon”, em que Austen confirma a predileção por colocar a nu as tacanhezas da burguesia de seu país, algo que fez como ninguém.

“Razão e Sensibilidade” estava pronto para tomar fôlego e ver a luz da vida já em 1795, mas sua criadora só permitiu que abandonasse o fundo de uma gaveta passados dezesseis anos, quando Austen sentiu-se madura o bastante para arcar com os custos do que suas análises penetrantes a respeito de tudo quanto lia e presenciava, suas inferências mais e mais corretas sobre temas de alcova, que terminavam por se confundir com a política e a economia, sobretudo no Reino Unido, e, naturalmente, as opiniões elegantes, mas firmes, no que concerne à incorporação da mulher ao tecido social.

E a atmosfera provocativa do que se vê na tela repete-se em tudo o mais: soa como uma saborosa afronta Hollywood ter escolhido o taiwanês Ang Lee para diretor do filme. Lee, um profissional que foi cavando seu lugar na elite dos realizadores mais importantes do cinema, foi o homem certo para o projeto exato ao fazer refulgir cada palavra do texto original apenas com o socorro da excelência técnica. O resultado é um trabalho incomparável, cujo esmero salta aos olhos a cada cena.

O imóvel suntuoso onde moram as Dashwood é colocado à venda pelo proprietário legítimo. No leito de morte, o patriarca, com Tom Wilkinson numa participação especial, garante que a ex-mulher, de Gemma Jones, e as três filhas do primeiro casamento não tenham acesso ao testamento e sequer ao inventário, e se contentem em viver com quinhentas libras anuais. Elinor, Marianne e Margaret acusam o golpe cada qual a seu modo — a sequência em que a Marianne de Kate Winslet toca ao piano uma canção de aguda melancolia, que leva ao pranto a mãe numa sala contígua, é, sem dúvida, umas das mais sublimes do cinema —, mas ao menos tentam não dar na vista, uma vez que os novos donos já estão a caminho.

Não deixa de causar espécie a maneira abnegada com que as Dashwood lidam com o maior trauma de suas vidas, sem nunca maldizer o defunto, malgrado a pena de Austen faça questão de se agarrar à toda chance de apontar o desapontamento das quatro, especialmente de Elinor, que como a mais velha das filhas decerto trabalhou muito para a manutenção da casa e foi uma colaboradora incansável na criação das irmãs. Emma Thompson, que assina o roteiro, não move um músculo que não seja para enfatizar sua angústia, concentrando todas as reações da família. Se ela é a sombra entre as Dashwood, Emilie François (hoje Myriam François-Cerrah depois de ter abandonado as artes dramáticas, se convertido ao islã e ter passado a dedicar-se ao jornalismo, não necessariamente nessa ordem) é quase sempre o sal do enredo, sobretudo no primeiro ato, quando ainda prefere ficar mais tempo na casa da árvore e sob as escrivaninhas da biblioteca.

Com a chegada do núcleo masculino, primeiro com o Edward Ferrars de Hugh Grant, depois com Greg Wise na pele de John Willoughby, e por fim com Alan Rickman encarnando o coronel Christopher Brendan, o único verdadeiramente nobre dentre eles, Lee trabalha as elucubrações de Austen sobre o sentido do amor — se é que isso é possível —, se mais afeto à vida ao ou sonho. E, felizmente, nenhum dos dois responde.


Filme: Razão e Sensibilidade
Direção: Ang Lee
Ano: 1995
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.