Filme com Steve Carell que acaba de chegar à Netflix vai te ensinar uma lição sobre o veneno da política

Filme com Steve Carell que acaba de chegar à Netflix vai te ensinar uma lição sobre o veneno da política

Experiente (e viciada) em acompanhar guerras com riqueza de detalhes, de dois em anos a população dos Estados Unidos deixa-se envolver pela atmosfera belicosa de outro tipo de confronto: o confronto das urnas, prazer que o título do filme de Jon Stewart define bem. De uma forma bastante sui generis, “Irresistível” se debruça sobre os embates de republicanos e democratas guiado por alguém com largo tirocínio no assunto. Por dezesseis anos, entre 1999 e 2015, Stewart apresentou o “The Daily Show”; o programa, cuja característica fundamental sempre foi satirizar a política (e principalmente os políticos) na América, a despeito de coloração ideológica, é campeão de audiência em diversas faixas da população dos Estados Unidos, e boa parte desse mérito cabe à argúcia de raciocínio, à técnica de contestar o maior absurdo com toda a lhaneza e à oratória mordaz de seu âncora mais longevo, substituído pelo sul-africano Trevor Noah em 2015. E a vida foi em frente. Na 27ª temporada, o “The Daily Show” parece longe de pedir arrego, e “Irresistível” é a prova de que Stewart ainda tem muita bala no tambor.

O diretor-roteirista abre seu filme fazendo um registro ágil da campanha eleitoral de 2016, mais precisamente do terceiro e último debate entre Donald Trump e Hillary Clinton, com o resultado entre circense e lamentável que conhecemos. Das loucuras que se passaram diante das câmeras para bilhões de espectadores em todo o mundo, Stewart pinça uma ideia e menciona uma tal sala dos giros, idealizada para que os candidatos digam o que tiverem vontade, e esta é a plataforma de onde ele salta a fim de ir cada vez mais fundo no cinismo dos aspirantes ao poder, que expressam opiniões a um só tempo óbvias e cuidadosamente escamoteadas, que nem mesmo os radares mais sensíveis das raposas felpudas do jornalismo político capturam. Profissionais como Gary Zimmer deitam e rolam nessa lama tóxica e rica, e arrastam consigo uma vasta equipe, de repórteres investigativos que se seduzem pelos altos ordenados propostos pelos coordenadores de campanha a analistas cartesianamente forjados para fazer com que a imprensa compre a versão que eles julgam vantajosa, passando por fonoaudiólogos, especialistas em expressão corporal e, claro, os indefectíveis marqueteiros. Quando Zimmer, interpretado com o carisma habitual de Steve Carell, conhece Jack Hastings, um coronel da reserva dos fuzileiros navais acostumado à tranquila vida em seu rancho numa cidadezinha do Wisconsin, no centro-oeste americano — ainda que nunca hesite em bater de frente com Billy Braun, o prefeito vivido por Brent Sexton, todas as vezes em que se sente vilipendiado em sua cidadania (o que acontece com uma frequência perturbadora) —, descortina-se o que ele considera a grande oportunidade de dar novo fôlego à carreira, além de embolsar uma fortuna por baixo dos panos.

A entrada em cena de Chris Cooper redefine a trama em todos os sentidos. O “machão do maxilar quadrado”, como chamam-no os jornalistas, é o destaque plácido do filme. Enquanto Stewart prepara a reviravolta que qualquer uma adivinha, Hastings cresce e aparece, na campanha e na história, despertando os ressentimentos de que Faith Brewster, o contraponto de Zimmer, se nutre. Quando o personagem de Carell consegue o impossível e arregimenta um conservador de quatro costados para o Partido Democrata e vai ainda mais longe e o convence a disputar a prefeitura contra Braun, Rose Byrne arromba a porta e tenta melar a festa do adversário, por quem tem uma paixão recolhida — malgrado diga numa ocasião que ele fica com a “vagina molhada” diante de pretensos salvadores da pátria como Hastings.

A impressão mais vívida que se tem ao término dos 102 minutos de filme é que “Irresistível” precisava de mais tempo, o que em verdade pode ser um honroso elogio ou uma caçoada particularmente maldosa. Neste caso, esses minutos a mais serviriam para que o público leigo entendesse o que Stewart quis dizer, não obstante a política rasteira que se faz acima ou abaixo do rio Grande seja uma lástima só. Se nem Napoleão compreendia direito o que atrai um homem comum para o poder, imaginem os comediantes, acostumados a lidar com a graça da política de longe, mas meio estupidificados quando resolvem chafurdar nesse pântano sem lógica.


Filme: Irresistível
Direção: Jon Stewart
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.