Meninas e meninos, conheci a escritora Elizabeth Costello quando li a novela experimental “A Vida dos Animais”, do escritor sul-africano J. M. Coetzee, prêmio Nobel de Literatura de 2003. Coetzee é um exímio criador de personagens. Em sua rica galeria figuram desde sua recriação de Dostoiévski, em “O Mestre de São Petersburgo”, até David Lurie, o intelectual caído em desgraça da obra-prima “Desonra”. Talvez sua criação mais célebre seja justamente Elizabeth Costello, uma quase alter ego do escritor. A primeira aparição aconteceu em “A Vida dos Animais”, de 1999, e desde então ela tem figurado em obras como o “romance” apresentado na forma de ensaios de 2003, que recebeu seu nome, e a coletânea “Contos Morais”, de 2021, entre outras.
“A Vida dos Animais” não é exatamente uma novela na acepção tradicional desse gênero literário. Trata-se da publicação conjunta de duas palestras fictícias e de quatro ensaios sobre estas palestras. Explico: quando Coetzee foi convidado a ministrar duas conferências no tradicional encontro acadêmico de Tanner Lectures, promovido pela universidade americana de Princeton, optou por desenvolver uma narrativa ficcional ao invés de discorrer sobre algum problema filosófico, político ou ético, como é comum nesses ciclos de debate. Inegavelmente, foi uma estratégia pouco ortodoxa. Mas o que de fato quebrou o protocolo acadêmico do encontro foi o tema escolhido pelo orador: os direitos dos animais.
A surpresa motivou quatro intelectuais a produzirem comentários acerca da saudável “descompostura” de Coetzee. Os pontos de vista são os mais diversos. Escreveram uma bióloga, uma crítica literária, uma historiadora da religião e um estudioso da zooética. A soma desses seis textos, mais a competente introdução escrita por Amy Gutmann, forma o conjunto do livro. Portanto, “A vida dos animais” é uma obra literária que já vem com sua fortuna crítica acoplada. Não sei se é pós-moderno, pois nem sei se o que chamam de pós-modernidade existe, mas, sem dúvida, é original.
O texto de Coetzee propriamente dito é intitulado de “A Vida dos Animais” e é dividido em duas partes: “Os filósofos e os animais” e “Os poetas e os animais”. Trata-se de uma narrativa sobre uma escritora idosa que é convidada a ministrar duas palestras em um conceituado encontro acadêmico e surpreende todos ao optar por falar sobre os direitos dos animais. Estamos diante de um óbvio jogo de espelhos. Não de espelhos comuns, mas de espelhos de circo, onde as imagens refletidas não reproduzem necessariamente a realidade.
A despeito da semelhança da situação, Elizabeth Costello não é exatamente uma alter ego de Coetzee. Embora partilhem da mesma causa, diversas vezes, o escritor demonstra que não concorda com todas suas ideias. Costello é apresentada como inteligente e talentosa, não também ingênua, alienada e contraditória. Compara o Holocausto Judeu com bois em um matadouro, usando caríssimas botas e bolsa de couro. Coetzee colocou-a em debates que não pode vencer, contra adversários infinitamente mais preparados do que ela. Nada disso é gratuito, serve para enriquecer e dar dimensão humana ao personagem.
Ao fim, podemos até discordar ou questionar o radicalismo ingênuo de Costello, mas saímos da leitura convencidos que estamos diante de um dos grandes personagens femininos da história da literatura.
Livro: A Vida dos Animais
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Páginas: 148
Editora: Companhia das Letras
Nota: 8/10