Quarenta anos atrás, Marcelo Rubens Paiva fez o caminho inesperado para um jovem entrando na idade adulta: começou a escrever suas próprias memórias. Memorialismo é coisa de quem passou por poucas e boas na vida ao longo de muitos anos. Narrativa de velhos escritores ou aventureiros que viajam pelo mundo. Mas aquele rapaz enfrentou barras pesadíssimas desde cedo e que mereceram registros nos livros “Feliz Ano Velho” (1982), “Ainda Estou Aqui” (2015) e “Meninos em Fúria” (2016) — este último escrito em parceria com o músico Clemente Nascimento.
Nos anos 1980, a literatura brasileira teve a onda de novos autores e autoras que trouxeram uma linguagem sintonizada com a abertura política. Era a época da cultura do rock, drogas, sexo, fim da censura, anistia, pós-ditadura e pensamento livre. Davam a mais perfeita tradução disso os livros de Caio Fernando Abreu, Reinaldo Moraes, Ana Cristina Cesar, e o rock de Rita Lee. Mais adiante na década, surgiram os “burgueses sem religião” chamados Renato Russo, Cazuza e Júlio Barroso com suas canções que não eram mais a MPB de Chico Buarque e Caetano Veloso.
A rua não era mais para a juventude que protestou nos anos 1960, nem para a turma que embarcou cedo na guerrilha urbana e deixou depoimentos pessoais e geracionais em livros de memórias, como os de Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis. Estas obras, aliás, foram lançadas na fase de abertura lenta e gradual do Brasil, e a intenção era revelar histórias ocultadas pelos militares. “As aventuras do Gabeira entrevam pelo meu ouvido e me faziam lutar junto. Tinha momentos em que identificava profundamente com ele”, conta o narrador de “Feliz Ano Velho”.
Dois corpos
A luta de Marcelo Rubens Paiva era dupla: sobreviver ao acidente brutal que o deixou paraplégico aos 20 anos de idade (segundo ele, foi uma grande “cagada” pessoal) e entender a história do pai assassinado pelos militares da ditadura iniciada em 1964. O ex-deputado Rubens Paiva foi sequestrado em sua casa, em 1971, e jamais teve o corpo devolvido à família. Virou um dos muitos desaparecidos políticos, pelos motivos mais fúteis que se pode ter. O livro “Feliz Ano Velho” revela assim a história do corpo lesionado do filho e a do corpo do pai que desapareceu para sempre.
Boa parte do livro é a narrativa da recuperação de Marcelo nos hospitais. O corpo perde os sentidos num primeiro momento e vai recuperá-los aos poucos. Há uma mistura de fúria, desespero e, ao final, vontade de sobreviver —algo que seu pai não teve chance de fazer. As expressões são muito corporais em sua narrativa. “Eu quero sentar, sentar. Quero ir para um banheiro, sentar na privada, peidar, roer a unha, bater uma punheta”, diz esse narrador, que aos poucos percebeu a volta do prazer sexual e as formas de viver possíveis numa cadeira de rodas.
A dor da memória inclui sobretudo a figura de sua mãe, Eunice, a personagem central de “Ainda Estou Aqui”. A mulher, mãe e viúva apagada dos livros oficiais que se reinventa: “Você já imaginou uma mãe de cinco crianças ter a sua casa invadida por soldados armados com metralhadoras, levarem seu marido sem nenhuma explicação e desaparecerem com ele? Já imaginou essa mãe também presa no dia seguinte, com sua filha de quinze anos, sem nenhuma explicação? Ser torturada psicologicamente e depois solta sem nenhuma explicação?”.
Cores da liberdade
“Feliz Ano Velho” foi o terceiro título da coleção Cantadas Literárias, que se tornou um fenômeno da editora Brasiliense. Há imagens hoje na internet que mostram a 24ª edição do livro de Marcelo Rubens Paiva — um feito inacreditável de vendas em qualquer época do Brasil. A repercussão foi de tal ordem que a obra virou filme em 1987, pelas mãos do diretor Roberto Gervitz. Ressalte-se que não se tratava mais do Cinema Novo dos anos 1960, mas da onda recente de cineastas que buscaram o diálogo com o público jovem na transição democrática do país.
As imagens iniciais de “Feliz Ano Velho” mostram a passagem do ano de 1979 para 1980. Gervitz resgatou cenas dos corredores da tradicional São Silvestre, na cidade de São Paulo, e exibe os músculos em movimento, contrastando com o personagem central Mario (o Marcelo do livro), que ficou paraplégico e ainda se recuperava de um acidente. O corpo atlético aparece ao lado do corpo paralisado na tela. E permeia a narrativa o outro corpo, o do desaparecido político na ditadura.
Gervitz escolheu os tons azulados para pontuar o presente melancólico do filme, uma vez que Mário enfrenta a revolta pela perda de movimentos corporais — junto com a primeira perda do pai assassinado. Quando muda o tempo narrativo, surgem outras cores. Num flashback com saturação de vermelho, o menino Mário pergunta à mãe de onde vêm os pesadelos e conta que os seus piores sonhos trazem os homens levando seu pai de casa. Não se sabe se ele morreu, se está vivo, onde se encontra o corpo — a mãe é uma Antígona querendo enterrar o marido.
Outra sequência tem o predomínio do verde com a lembrança de uma caminhada ao lado do pai numa fazenda. No final do filme, Mário/Marcelo diz aos amigos que mantém um quadro branco na parede de seu quarto e projeta ali as memórias, o livro que está escrevendo. Por meio de cores, o filme evidencia as mudanças de comportamento nos anos 1980, quando a juventude abandonou o “romantismo revolucionário” e entrou na era da “nova subjetividade”. Com ou sem intenção, Gervitz criou uma das primeiras reflexões da pós-ditadura brasileira.
Esquecimento forçado
A reflexão madura de Marcelo Rubens Paiva se materializou no livro “Ainda Estou Aqui” (2015). O centro da narrativa é a história de Eunice, mãe do autor e acometida pelo Mal de Alzheimer em anos recentes. A mulher que tanto batalhou para encontrar o corpo do marido acabou desenvolvendo a doença que produz o esquecimento. Pelas coincidências ruins da vida, ela morreu, em 2018, no mesmo dia em que se completaram 50 anos do Ato Institucional número 5, o famoso AI-5, que legitimou o assassinato de Rubens Paiva.
“Minha mãe, aos oitenta e cinco, não entrou no Estágio IV [da doença], o pior de todos, sua vida tem muitos atos. Teremos mais um. Enquanto a morte do meu pai não tem”, diz Marcelo, que retoma no livro mais recente vários pontos da história inacabada de Rubens Paiva. Cumpriu assim uma promessa ao amigo Luís Travassos, que escreveu em 1981 uma carta/prefácio de “Feliz Ano Velho” e diz ter sentido falta de uma visão mais personalizada do autor sobre o pai.
Os apêndices de “Ainda Estou Aqui” reproduzem documentos do longo processo que trata da morte de Rubens Paiva pela ditadura. Mal sabia o autor (e muito menos nós) que três anos depois seria eleito Presidente da República um defensor entusiasmado da tortura e dos assassinatos nos anos 1970. Com a onda reacionária iniciada em 2018, o diretor Walter Salles Jr. decidiu adaptar “Ainda Estou Aqui” para o cinema.
Sedimentar a memória do pai, o corpo desaparecido eternamente, é o trabalho do filho para compensar o Alzheimer da mãe. O esquecimento deve ser barrado de alguma maneira, ainda mais no debate público. Também é a forma de contar aquelas histórias para as próximas gerações — Marcelo teve um filho em 2014. No livro, Eunice encarna a advogada que passou a defender os direitos humanos, sobretudo de indígenas, em tempos difíceis. E os índios sabem bem, há séculos, o que é ser aniquilado pelas armas do Estado e dos governos de plantão.
Encontro inesperado
Marcelo Rubens Paiva voltou às memórias dos anos 1980 com o livro “Meninos em Fúria — E o Som que Mudou a Música para Sempre” (2016). A nova história contada pelo escritor foi feita a quatro mãos, com Clemente Nascimento, líder da pioneira banda punk paulistana Inocentes. O escritor e o músico fazem o encontro inesperado do sujeito branco de classe média com o homem negro da periferia batalhadora. Tem hora no livro que não dá para saber quem mesmo está contando aquelas histórias. Era o final de ditadura, com um bando de jovens com vinte e poucos anos.
No ressurgimento político de 1982, o cadeirante Marcelo foi parar num show nada inocente de uns rapazes que gritavam o refrão “Pânico em SP”, tendo Clemente nos vocais. “Meninos em Fúria” reconstrói a vida nas quebradas paulistanas para um rapaz negro que ralava muito para ter um futuro. É possível ver como a ditadura e a polícia marcavam o dia a dia e matavam quem vivia na periferia de São Paulo. O pânico em SP não era só da classe média militante de esquerda (tão ridicularizada nos dias atuais pelo conformismo engajado e defensores da ditadura militar).