O Peso do Pássaro Morto: Aline Bei tira Stanislavski do palco e leva para literatura

O Peso do Pássaro Morto: Aline Bei tira Stanislavski do palco e leva para literatura

Meninas e meninos, eu li “O Peso do Pássaro Morto”, de Aline Bei, e voei. O romance, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, foi um fenômeno da internet. Particularmente do Instagram, rede social pela qual grande parte de sua tiragem foi vendida. Pessoalmente pela autora, aliás. A paulistana Aline Bei, formada em Letras pela Universidade Católica de São Paulo e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena, trabalhou seu livro leitor por leitor, criando tal boca-a-boca positivo que chamou atenção das grandes editoras. Seu romance seguinte, “Pequena Coreografia do Adeus”, foi editado pela Companhia das Letras. Sem dúvida, trata-se de uma voz de destaque na literatura brasileira contemporânea. Pode-se afirmar que, mais do que leitores, angariou fãs. Muito pelo carisma e habilidade no manejo das redes sociais, mas, certamente, também pela capacidade de evocar emoções viscerais pela escrita. Sua literatura, se assimilada em certo tom, é catártica. De modo intencional e planejado. Aline Bei é uma artista conscienciosa de seu ofício.

O peso do pássaro morto
O Peso do Pássaro Morto, de Aline Bei (Editora Nós, 168 páginas)

Foi atriz antes de ser escritora. Tornando-se escritora, nunca deixou de ser atriz. Escreve atuando. Amalgamaram-se os dois talentos. Essa observação não se trata de mera retórica crítica. Consciente ou inconscientemente, Aline Bei transportou o Sistema Stanislavski, que influencia praticamente todas as escolas contemporâneas de atuação, dos palcos para as páginas. O ator e diretor russo Constantin Stanislavski, no começo do século 20, desenvolveu um método de interpretação profundamente calcado na psicanálise, criando técnicas que se beneficiavam da memória afetiva dos atores como base para a apresentação de reações emocionais genuínas e não apenas simuladas durante suas performances. Esse “Método”, levado ao extremo pelo Actors Studio de Nova York, capitaneado por Stella Adler e Lee Strasberg, permite que o artista crie de dentro para fora. Por conta dele, Aline Bei conseguiu exprimir esteticamente e emocionalmente a voz narrativa da protagonista de “O Peso do Pássaro Morto”, mesmo ser ter passado por suas terríveis experiências. Sua literatura é uma literatura de performance. 

Não é errado definir “O Peso do Pássaro Morto” como um romance em versos, embora também não seja exato. É possível vislumbrar algum parentesco distante com o clássico “Eugênio Onêguin”, de Aleksandr Púchkin, mas sua filiação parece-me mais próxima dos poetas concretistas brasileiros Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Aline Bei faz versos, mas também desfaz frases, esmigalha períodos, quebra palavras, espalha letras, espalha números, espalha símbolos, e, sobretudo, evoca silêncios pelas páginas de seu romance. Nada disso torna o livro de difícil leitura. Pelo contrário, flui perfeitamente.

“O Peso do Pássaro Morto”, em sua forma e conteúdo, é um elaborado misto de prosa poética com verso livre, demonstrando ser o resultado da busca da autora por uma dicção própria. Se é totalmente original ou não, importa pouco. O fato é que se tornou uma marca registrada. Uma página de Aline Bei pode ser identificada por um simples olhar.

Importante enfatizar que esse cuidado estilístico também é sentido na construção da voz narrativa. Cada fase vivida pela protagonista, da infância até a meia idade, assume um tom condizente com suas experiências, escolhas, maturidade e momento psicológico. Se não são perfeitas, destacadamente a voz infantil, são bastante satisfatórias.

Não raramente, Aline Bei é acusada de ser supervalorizada e superficial. A despeito disso, é fato que os assuntos que aborda são pesados: violência sexual, sexismo, maternidade indesejada, conflitos familiares, incomunicabilidade, solidão, abandono, depressão. Suas abordagens, analisadas de modo parcial, podem gerar a falsa sensação de que foram preparadas para atingir apenas a sensibilidade feminina. Discordo dessa premissa. “O Peso do Pássaro Morto” parte do feminino para tratar do humano. Esse é o grande tema da literatura e, por conseguir alcançá-lo, essa obra tornou-se relevante, reverberando entre sua base de fãs. Justamente por ter gerado tal impacto é natural que também receba críticas: “literatura para meninas cult”, “simulação de vanguarda”, “muita emoção e pouca razão” são apenas algumas delas. De certo modo, é positivo que esse debate exista. Toda discussão sobre arte é bem-vindo. Nesta questão, sou time Aline.   

Merece ser anotado que nas páginas finais o livro muda de tom e atmosfera, flertando inclusive com o sobrenatural. Essa mudança de registro pode incomodar alguns leitores, mas não tira o mérito do conjunto. O destino da protagonista reflete sobre a banalidade da existência, em um registro entre o trágico e o melodramático. Após superar esses episódios, mudando a voz narrativa de primeira para terceira pessoa, o epílogo acontece de modo instigante. Temos um belo final aberto, com dois homens, dois estranhos, se encarando. E uma pergunta no ar.


Livro: O Peso do Pássaro Morto
Autor: Aline Bei  
Páginas: 165
Editora: Nós
Nota: 9/10

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.