Nas conversas que tenho com os meus alunos do curso de Medicina, costumo alertá-los para os riscos daquilo que chamo de arrogância acadêmica, ou seja, aquele sentimento que acomete praticamente todos os que passam por um curso universitário e acham que, por isso, possuem resposta e soluções para todos os problemas e situações. É bem verdade que talvez seja a imaturidade juvenil que nos faça agir assim, pois o discernimento, a capacidade de analisar e ver as coisas de maneira mais aprofundada só costumam vir quando os cabelos brancos se avolumam.
Lembro-me de uma lição que me marcou profundamente e me fez enxergar além do que habitualmente nos ensinam no curso de Medicina. Num dos muitos plantões que dei no pronto-socorro do Hospital de Caridade São Pedro d’Alcântara, da antiga Capital de Goiás, nos anos 1990, atendi uma paciente bastante idosa, na casa dos oitenta anos, com uma crise aguda de hipertensão arterial: dor de cabeça intensa, tonturas e sangramento nasal. Tinha sofrido uma queda e, por isso, foi levada às pressas ao hospital.
Uma vez diagnosticado o problema e aplicados os medicamentos necessários, detive-me, mais demoradamente, na leitura de seu prontuário. Havia completado 81 anos de idade no mês anterior; viúva, com três filhos; os cabelos, inteiramente brancos, emolduravam um rosto cheio de rugas onde brilhavam dois olhos azuis. Morava sozinha, num bairro longínquo. Como única renda, recebia uma magra pensão do antigo Funrural. Nas anotações, constatei que mudara de medicação várias vezes. Começara o tratamento com os remédios gratuitos do posto de saúde, mas, ao que parece, a doença era rebelde e necessitou a troca por outros que o sistema público não distribuía e que não custavam barato.
Olhei para a maca, onde ela, já sentada, dizia estar boa para ir para casa.
— Dona Amélia, ainda não. Vamos esperar mais um pouquinho…
— Doutor, eu não posso ficar aqui. Tenho meu filho caçula que mora comigo. O senhor sabe, ele bebe e só tem a mim para zelar dele…
— Mas para isso a senhora tem que ficar boa, primeiro.
— Já não estou mais com aquela ruinzeira de quando cheguei aqui. A cabeça já aliviou bastante e o enjoo do estômago, também.
— Dona Amélia, preciso dar uma bronca na senhora. Estou vendo nas anotações da sua ficha médica que volta e meia a senhora vem aqui com esse mesmo problema. Está usando o remédio direitinho?
— Faz mais de semana que não uso, doutor…
— Mas, como é que pode? A senhora não sabe que tem que tomar todo santo dia, sem falhar nenhum?
— Sei sim, senhor…
E olhando-me candidamente com seus olhos azuis da cor do céu, disse-me apenas:
— Ou eu compro o arroz, ou eu compro o remédio, doutor…
Calei-me, envergonhado com a minha atitude e desse dia em diante passei a me interessar mais pelas condições de vida dos pacientes; pelo que comiam; como e onde viviam; de que meios para o sustento dispunham. Mais que isso, busquei, como diretor que era do hospital, à época, obter alguma ajuda para minorar as dificuldades de muitos que, como Dona Amélia, enfrentavam a cruel situação de escolher entre comprar a comida ou o remédio. Acudiram a União Médico-Missionária Italiana e a Cruz de Malta francesa, graças à intermediação de amigos italianos e franceses.
Por evidente, não se resolveu o problema em definitivo, mas isso permitiu que Dona Amélia e muitos outros pudessem ter o remédio, sem deixar de ter o arroz…