“Legítimo Rei” impressiona. No filme de David Mackenzie, responsável por abrir o Festival Internacional de Cinema de Toronto de 2018, os inúmeros takes obtidos por meio de drones; o figurino, com reproduções minuciosas de cada detalhe visto nas roupas de setecentos anos atrás; as batalhas, elemento de fulcral importância numa produção desse gênero, coreografadas com esmero, ratificam o preciosismo de Mackenzie, que entrega um filme brilhante, fazendo com que um assunto espinhoso e obscuro demais para o gosto do brasileiro, desperte paixão por insuflar temas universais como cobiça, consciência social, ruína moral de uma família e o doloroso amadurecimento de uma nação. O diretor é um dos mais habilidosos em extrair do elenco com o qual trabalha o que julga ser essencial a fim de fazer grande a história que escolheu contar — e aqui, episódios aparentemente triviais transformam-se em pequenos épicos dentro da epopeia-mãe como se fosse a coisa mais natural do mundo.
A força cênica do protagonista é o impulso de que Mackenzie necessita para mergulhar num universo de histórias tão fascinantes quanto desalinhadas e trazer à superfície a trajetória de Roberto I (1274-1329), o soberano da Escócia celebrizado por liderar uma guerra contra a monarquia inglesa no princípio do século 14. Chris Pine encarna à perfeição o ideal do demiurgo, do governante provedor que supre com arroubos paternais as necessidades de seu povo, sem dúvida um pioneiro do populismo das repúblicas bananeiras ao redor do mundo como o conhecemos hoje. A própria Escócia era então um território cujas idiossincrasias geopolíticas nem seus cidadãos eram capazes de apreender. Robert The Bruce luta por seu império, sem pejo de atirar o país no longo período de instabilidade que se estende no tempo mesmo depois de sua vitória, o que acaba por disseminar entre todos os seus súditos, da alta aristocracia ao vassalo mais humilde, caldeirão de ressentimento que vai borbulhando na marcha do tempo. A atmosfera de relativa paz social cede lugar à efervescência que se assenhora dos escoceses, e “Legítimo Rei” faz um registro honesto do fenômeno valendo-se de um plano-sequência muito bem executado, quando afloram pílulas da personalidade autoritária e misógina do detentor da Coroa da Escócia.
Como o filme deixa claro, Robert The Bruce e Edward I, o príncipe de Gales vivido por Billy Howle, se mantêm numa eterna disputa pelo trono escocês e pelo protagonismo da trama, um roteiro construído entre Mackenzie e mais quatro corroteiristas. Pine e Howle fazem seus personagens trocarem de papel algumas vezes, sofisticação narrativa complexa justamente por emular a naturalidade da própria vida, que não dá a (quase) ninguém nem a beatitude dos santos nem a maldade gratuita dos monstros de coração de gelo que trucidam criancinhas na ponta de suas espadas. Robert The Bruce e Edward I seguem nessa brincadeira, sendo ora vilão, ora herói, entretendo o público e tomando parte no jogo também. Até que o terreno fica um pouco menos pantanoso e o soberano das Terras Altas assume em “Legítimo Rei” essa qualidade que o escocês David Mackenzie lhe confere. Colocando Robert The Bruce na figura do patrono de uma série de guerrilhas contra um império muito mais influente e com poder de fogo muito mais ofensivo, o diretor assina um trabalho confessadamente ufanoso, já que que seus patrícios acabam por bater os súditos de Eduardo 2° (1284-1327), um dos antecessores de Henrique 5°, por seu turno resenhado em “O Rei” (2019), levado à tela por David Michôd.
Reprodução pouco original do argumento do guerreiro destemido que atreve-se a investir contra um rival de dimensões pantagruélicas, empregado ad nauseam desde a antiguidade pré-cristã, como se tem no embate bíblico de Davi contra Golias, “Legitimo Rei” se constitui um documento com o devido rigor intelectual sobre as desavenças entre escoceses e ingleses, que nunca saem do horizonte da Escócia e da Inglaterra, enevoado para além da meteorologia — o aparecimento de Mary Stuart (1542-1587), outro membro da realeza da Escócia que se levanta contra a Inglaterra, então governada por Elizabeth I (1533-1603), evento retratado em “Duas Rainhas” (2018), dirigido por Josie Rourke, presta-se a um contragolpe do destino para que as quizílias anglo-escocesas voltem a ganhar força. Trezentos depois de Robert The Bruce ter batido o exército de Eduardo 2°, Jaime 6° (1566-1625), descendente do monarca escocês, é coroado também rei da Inglaterra, numa reviravolta como só a História — e a própria vida — podem cometer.
Uma das muitas possíveis interpretações do filme também se volta para a necessidade de se botar o dedo nas sempiternas chagas das monarquias, que, removendo-se o glacê, é uma forma de governo em muito semelhante às ditaduras que assolam vários países mundo afora em pleno século 21. Robert The Bruce o sente na própria carne, ao conservar-se no trono, ao passo que tem a mulher, Elizabeth de Burgh (1289-1327), sequestrada pelas tropas da Inglaterra. Apesar de efêmera, justamente por Mackenzie respeitar os caminhos tomados pela história real, Florence Pugh constrói sua personagem como sói fazer, de maneira tocante, o que torna a agonia do rei ainda mais vívida e revigora o dilema com que grandes homens (e, num sem-número de casos, nem tanto) esbarram ao longo de sua jornada. Governar é um exercício sobre-humano de renúncia a vontades banais para o resto da humanidade.
Essas histórias de tempos tão passados, quando poderosos tinham por aqueles que governavam algum apreço, continuam a maravilhar o espectador comum, malgrado este nem sempre consiga dissolver o verniz da narrativa e entender seu contexto, estando, ao cabo desse processo exasperantemente moroso, apto a compreender seu lugar na sociedade em que se insere. Sete séculos depois de Roberto I, mesmo gozando de status democrático e uma constituição redigida sob valores caros às repúblicas, a Escócia ainda tem por chefe de Estado um rei, Charles III, assunto ao trono do Reino Unido e outros catorze Estados “soberanos” e “independentes” desde a morte da mãe Elizabeth II (1926-2022), a mais longeva monarca da História de todos os tempos, sucumbiu, enfim, a uma velhice tranquila e nababesca, como foram todos os seus 96 anos, em 8 de setembro de 2022.
O italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) escreveu em “O Leopardo”, publicado postumamente em 1958, que certas coisas mudam para que tudo permaneça igual. É difícil encontrar definição melhor para dinastias, encabeçadas por quem quer que seja.
Filme: Legítimo Rei
Direção: David Mackenzie
Ano: 2018
Gênero: Drama/Ação
Nota: 9/10