“O Dia do Atentado” é mais uma das várias tentativas do cinema quanto a entender o vasto processo de esfacelamento das instituições, da política e da própria humanidade que tem marcado a cadência do século 21. Num filme ágil, despretensioso, Peter Berg reacende o interesse por um tema que, na verdade, nunca saiu do radar da opinião pública e não parece disposto a poupar o cidadão comum. O dia 11 de setembro de 2001 prova-se cada vez mais uma linha bastante nítida a separar o velho mundo e este em que nos encontramos, sem sabermos quando há de se dar a nova ruptura, tampouco em que proporções, mas numa espera doentia, tanto mais angustiada por ninguém ter certeza sobre se está preparado o bastante. O homem sempre foi um bicho cheio de suas particularidades mais repulsivas, cuja alma, povoada de absurdos desejos de poder, não raro o conduz a inferências diabólicas acerca de seu papel e do que lhe pode facultar a vida; tudo o que o 11 de Setembro fez foi renovar o anseio de toda a maldade fundamental que certas pessoas podem esconder, conferindo-lhes assim legitimidade para empreender outros episódios da mais profunda insânia em nome das causas que julgam dignas.
Esse evento, o atentado terrorista deflagrado quando da realização das provas da Maratona de Boston em 15 de abril de 2013, redundou na morte de três pessoas e deixou centenas de feridos. Dotado de uma inclinação especial para o assunto, Berg se estende sobre o cerco aos perpetradores do crime, situação inédita desde 7 de setembro de 1630, quando aquela pequena vila ao nordeste dos Estados Unidos foi fundada por puritanos recém-chegados da Inglaterra. Em 383 anos, o Berço da América Moderna experimentava seu maior desafio, numa operação que demandou a participação devotada de militares das três forças, agentes do FBI, policiais, bombeiros e, claro, da população civil, a parte mais hediondamente atingida e, também por isso, interessada na prisão dos responsáveis. Para tanto, a capital de Massachusetts teve de ser fechada por uma semana, tempo o suficiente para transformar a vida dos moradores numa curiosa mistura de tédio, apreensão, paranoia, inconformidade e fúria.
A história começa com Tommy Saunders, o sargento vivido por Mark Wahlberg, numa ocorrência cheia de contratempos e desacertos. Sofrendo uma punição que já alcança quatro meses, Saunders, um anti-herói inventado por Berg e sua equipe de corroteiristas, encarna esses tipos meio fanfarrões, meio tortos, mas puros em essência, e o principal, perdidamente apaixonados pelo trabalho. A polícia é uma esposa um tanto obsessiva, tomada de um incontrolável sentimento de posse, e, no fundo, esse é o casamento que lhe interessa, tanto que a união com Carol, de Michelle Monaghan, não obstante feita de um amor quase ideal, místico até, vai se liquefazendo. Enquanto pode contar com ela, o personagem de Wahlberg usufrui de uma imersão na banheira do casal, a fim de tratar uma concussão no joelho, o desdobramento mais grave da batida da noite. Seu verdadeiro martírio será encarar a maratona algumas horas depois, não como atleta, mas na linha de chegada, para ele um ultraje impossível de se administrar.
O prólogo meio arrastado cede lugar às cenas do atentado propriamente, num movimento arriscado, mas preciso. O diretor lança mão de centenas de figurantes, viaturas em trânsito constante, a algaravia das sirenes, closes de fraturas expostas banhados em muito sangue, no intuito de chegar ao núcleo do enredo. Ao passo que se concentra nas consequências nefastas da explosão, Berg mostra também a redenção de seu protagonista, o homem certo no lugar certo, e os embates de Saunders com o efetivo do FBI, chefiado pelo agente especial do FBI Richard DesLauriers de Kevin Bacon, numa das piores performances da carreira. Talvez nem seja exatamente a atuação de Bacon o problema, mas a forma como restam sempre mal resolvidos as pequenas fricções entre Saunders e DesLauriers, que transmitem a ideia nítida de que pode um aspecto mais grave qualquer na relação dos dois, que nunca emerge. A reconstituição do crime, num ginásio, simulando a área onde os competidores se reuniam, e a análise de imagens das câmeras de seguranças das ruas de Boston até alguns dias antes do atentado levam aos nomes de Dzhokhar e Tamerlan Tsarnaev (1986-2013), os irmãos quirguistaneses-americanos muito bem interpretados por Alex Wolff e Themo Melikidze.
A elucidação do caso, com os autores devidamente identificados, dá azo a uma magnífica sequência de perseguições e tiroteios, depois que os Tsarnaev veem malogrado seu plano de fuga, graças a intrepidez de Dun Meng, um estudante honconguês do MIT que havia sido feito refém, mas consegue escapar. Numa participação-relâmpago, Jimmy O. Yang é outra das ótimas surpresas de um filme difícil, sofisticado, que em meio ao caos de facínoras detonando petardos sobre gente simples, tem o condão de falar de amor, esperança e todas aquelas bobagens que poderiam salvar o mundo. Breves contextualizações já depois do encerramento refrescam a memória do espectador sobre os personagens reais de uma trama horrenda, cujo final parece muito mais feliz do que em verdade foi.
Filme: O Dia do Atentado
Direção: Peter Berg
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Drama/Biografia
Nota: 9/10