“Tempo Compartilhado” não tem não a menor intenção de reproduzir as tantas (e engraçadíssimas) histórias de famílias felizes, harmoniosas, todas mais ou menos parecidas, que, quando em férias, conseguem a questionável proeza de buscar embaixo de cada tapete toda a sujeira depositada no transcurso de um ano (ou uma vida), catá-la com mãos diligentes e esparrar aquela imundície pelo salão, à vista de todos. Produções que investem em retratar, cada qual à sua maneira, esses momentos entre escandalosos e quase trágicos de pessoas que se querem bem e se odeiam, de modo escrachado — como em “Férias Frustradas” (1983), dirigido por Harold Ramis, ou valendo-se de humor sofisticado, em que degustam-se notas amargas de um drama que preza pelo equilíbrio, de acordo com que é levado à tela em “Pequena Miss Sunshine” (2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris — ganham o público justamente por espelhar situações que qualquer um já viveu, ou pode viver. O roteiro do diretor mexicano Sebastián Hofmann, coescrito com Julio Chavezmontes, sem dúvida se aproxima muito mais do trabalho de Dayton e Faris, mas conta com a força inestimável de que só as narrativas de suspense, com suas idas e vindas e seus altos e baixos, são capazes.
O filme não demora a virar um imenso quebra-cabeça, simploriamente divertido depois da introdução morna, sobre o que pode existir de mais sórdido por trás de almas aparentemente pias, cujo maior objetivo neste mundo seria o de ajudar pais de família de classe média, afundados em dívidas e consumidos pelo massacre do cotidiano, a proporcionar alguns dias de descanso a suas esposas e filhos, num lugar bonito, com alguma mordomia e, o principal, sossego. Como se pode supor, nada disso sai do papel e Pedro, o protótipo mais bem-acabado da descrição acima, além de padecer ele mesmo das consequências de sua ingenuidade, estende essa nefasta agonia à mulher, Eva, vivida por Cassandra Ciangherotti, e Pedrinho, o Raton, filho dos dois. A princípio um tanto perdido em meio à complexidade do que Hofmann deseja registrar, Luis Gerardo Méndez passa a compreender o que o diretor quer dele e sua performance muda da água para o vinho, aí, sim, tem-se a medida exata de seu talento. Méndez captura de vez a atenção do espectador e a partir de sua fisionomia enérgica, quiçá até pendendo para a auxese, se vai tomando pé do drama que se prefigura.
O capitalismo tem uma habilidade nada desprezível em inventar objetos e serviços de que jamais precisaríamos a fim de que nos jogar na cara nossa insignificância. Compra quem quer, e até aí, nenhum problema; a situação fica mesmo delicada é quando se usa de má fé — o que muita gente define como “esperteza”, “sagacidade”, “arrojo”, “tino comercial” — para empurrar goela abaixo do consumidor uma qualquer tranqueira; quem está do lado de fora do balcão jamais sabe ao certo o que está levando e se algum dia poderá reivindicar o que considera ser justo, numa das tantas manobras covardes que despejam sobre nós. Em “Tempo Compartilhado”, o diretor alude aos tais clubes de férias para levantar a bola de quem paga a conta, e pior, paga pelo que não quer. O repouso de Pedro, Eva e Raton num tal Everfields, à primeira vista um resort de luxo, mas na verdade um ajuntamento de farofeiros sem o menor traquejo social, revela-se um calvário no instante em que o anti-herói descobre que o espaço que alugara seria dividido com Abel, o tipo entre farsesco e cínico de Andrés Almeida, e sua família buliçosa. Pedro, de fato um cândido, acredita nas boas intenções alheias e na premissa de que as pessoas erram por desmazelo, por descuido, mas nunca de caso pensado, e reporta o incidente à gerência. Fica sabendo que o overbooking não configura nenhuma ilegalidade caso se o pratique com consentimento de duas das três partes, isto é, Abel e o Everfields. Se até essa altura o protagonista se mostrara um sujeito judicioso, mesmo estoico em certa proporção, o que se passa a encontrar no personagem de Méndez é um travo da derrota, como cidadão, como indivíduo e mesmo como homem, uma vez que pode estar expondo sua família a cenários perigosos em meio a uma gente inegavelmente estranha, quiçá marginal. À medida que a história avança, com eventos que só o diminuem — a aula de tênis com um instrutor que flerta desavergonhadamente com sua mulher, experiência que acaba em sangue —, Pedro se convence de que há algo de muito nefando em tudo aquilo; entretanto, o que o abespinha de verdade é sentir que Eva e Raton demonstram um vínculo despropositado para com os novos “parentes”, uma intimidade de que, provavelmente, ele mesmo tivera a honra ou a chance de gozar.
A guinada que se vai constatar em “Tempo Compartilhado”, com um Pedro mais e mais imbuído de um espírito justiceiro, só é possível graças à entrada em cena de Andres, tão deslocado quanto ele nesse Éden decaído. Almas fragmentadas que se completam em suas necessidades e suas figadais misérias, o personagem de Miguel Rodarte partilha com o protagonista a sensação de ter sido enganado pelo Everfields, não sem boa dose de sadismo. Num casamento de aparências com Gloria, de Montserrat Marañon, dia a dia mais decadente por ele ser um subalterno da lavanderia do complexo hoteleiro, esforçado, mas incapaz de despertar o interesse dos chefes, e ela, uma auxiliar administrativa pronta a fazer qualquer coisa para ascender na carreira, Andres se cansa de nadar contra a maré e resolve colaborar com plano de reparação de Pedro, deflagrando um prejuízo irreparável para a vida profissional da mulher, já sobremaneira alquebrada desde a morte do filho do casal.
A linguagem cinematográfica escolhida por Sebastián Hofmann, plena de oscilações dramáticas de intensidade de maior ou menor potência, fazem de “Tempo Compartilhado” um filme dinâmico — ainda que o prólogo quase ponha tudo a perder — sem deixar de ser contemplativo, como convém a uma trama que se pretende um estudo sensível e aprofundado da alma humana, em especial quando submetida a uma conjuntura de permanente e variados insultos ao homem, e sobretudo ao homem comum, que não conta com ONGs, sindicatos, partidos políticos, nada. Hofmann imprime a seu filme a aura de um diário, em que um sujeito que se percebe desimportante até para os seus faz suas confissões inconfessáveis, sem que se tenha a sombra da morte por resultado. Chega a ser uma façanha em tempos como os nossos.
Filme: Tempo Compartilhado
Direção: Sebastián Hofmann
Ano: 2018
Gênero: Thriller/Drama
Nota: 9/10