Filmaço ganhador do Oscar na Netflix vai te levar ao limite da tensão por 157 minutos Divulgação / Universal Pictures

Filmaço ganhador do Oscar na Netflix vai te levar ao limite da tensão por 157 minutos

Uma das cineastas mais meticulosas e aclamadas de Hollywood, Kathryn Bigelow faz de “A Hora Mais Escura” (2012) um retrato preciso da sucessão de instabilidade e pânico em que os Estados Unidos mergulharam desde o 11 de Setembro, quando, em 2001, o terrorismo arreganhara os dentes para o mundo de maneira mais assustadora, deflagrando um episódio que, felizmente, continua a inspirar o repúdio da comunidade internacional e de mulheres e homens que prezamos pelos valores civilizatórios que nos possibilitaram chegar até aqui com alguma ordem, sem prescindir da liberdade e da segurança individuais. Quase tudo já se disse sobre o choque não de uma, mas de duas aeronaves contra as torres gêmeas do World Trade Center na Baixa Manhattan, no coração de Nova York, além de uma terceira, destinada ao Pentágono, sede do Departamento de Defesa americano, nas imediações da capital, Washington, e a batida do quarto avião contra um campo aberto próximo a Shanksville, na Pensilvânia, depois da tentativa heroica de alguns passageiros e tripulantes quanto a subjugar os sequestradores e assumir o comando do voo 93 da United Airlines, o menos falado. Não houve sobreviventes em nenhuma das ocorrências, que redundaram na morte de 2.977 civis e dos dezenove agressores e deixaram outras 6.291 pessoas feridas.

Quanto mais se tenta aprofundar no que efetivamente aconteceu nos bastidores do maior ataque à soberania americana em seu próprio território, mais aumenta a certeza de que, embora necessária, a resposta institucional aos atentados, como já se conjecturava que pudesse acontecer, derivou para abusos de toda ordem, inclusive contra civis, cenário cuja ignomínia pode muito bem ser comparada à das ofensivas patrocinadas pelo terror. O 11 de Setembro — e, principalmente, as longas duas décadas que os sucederam — assumiram o status de um grande Fla-Flu, cujo vencedor desse nefando campeonato é aquele que conseguir levar nas costas o maior número de cadáveres, troféu que atesta uma vitória insana contra a lógica, o bom senso, a diplomacia, a política, a economia e a humanidade. Democracias ocidentais ao redor do mundo foram obrigadas a reconhecer seus defeitos e vícios, ao passo que crescia a instabilidade de países tradicionalmente fortes. O tema carecia de uma análise desapaixonada, séria, multifatorial,  algo de que a maior parte dos burocratas mundo afora sequer ouviu falar. Mas Bigelow não se fez de rogada. 

Conscientemente ou não, Bigelow concentra boa parte da ação sobre uma personagem feminina, que encarna como poucos a paranoia, o medo, o ultrajado orgulho ianque, que nunca conseguiu recobrar sua inteireza. Da mesma forma que a diretora deixa claro que este é um filme eminentemente autoral, definido por sua visão de mundo presente em cada um dos muitos detalhes, alguns invisíveis a olho nu, a partir de um certo ponto do roteiro de Mark Boal é Jessica Chastain quem chama para si todas as atenções com a performance que lhe valeu uma merecida indicação ao Oscar de Melhor Atriz, só conquistado uma década depois com “Os Olhos de Tammy Faye (2021), dirigido por Michael Showalter. Maya, a típica mocinha personificada pelo talento imbatível de Chastain, materializa por meio de expressões fortes e um trabalho de corpo que dispensa arremates o que fez com que a protagonista se deslocasse para o Paquistão à cata de Osama bin Laden (1957-2011), líder e patrono da Al Qaeda, facção que reivindicou a autoria da barbárie desde o primeiro momento.

O texto de Boal, continuação protocolar de “Guerra ao Terror” (2008) — que na mesma ocasião levou os Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor, além de mais quatro prêmios —, é um sobe e desce de tensão que nem sempre funciona, mas que quando engata deve o mérito a Chastain. A atriz consegue com relativa facilidade destacar o temperamento obsessivo de Maya, o exagerado apego à carreira e ao que elege como sua missão de vida, a ponto de a história acabar se tornando uma elucubração a respeito da loucura que ameaça dominá-la e ofuscar o restante do elenco e a própria trama. Bigelow extrai essa versatilidade de Chastain e confere a seu filme a personalidade que caracteriza toda a sua obra — e então, ninguém mais se interessa pelo que pode haver de factual no enredo, uma vez que os jornais se encarregaram de tudo à farta, predicado ambivalente, que tanto enriquece como mina o vigor e a urgência da trama. O pulo do gato de “A Hora Mais Escura”, contudo, resta preservado: depositar em Maya todas as humanas fraquezas, como se ela personificasse os diminutos poderes do homem diante de um cenário em que a adversidade grassa em suas possibilidades mais hediondas. Maya vence, mas a um custo que nem ela mesma consegue estimar.


Filme: A Hora Mais Escura
Direção: Kathryn Bigelow
Ano: 2012
Gêneros: Guerra/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.