Já passa das quatro da manhã. Abri todas as gavetas dos pensamentos, mas não encontro o sono em nenhuma delas. Quanta desordem a minha! Vai ver o sono foi extraviado para fazer começar o sonho de outro alguém. Afinal de contas, quem anda dormindo com meus sonhos por aí?
Certamente, deixamos de sonhar quando estamos demasiadamente conectados às urgências e demandas externas do mundo. Não dormimos porque nos encontramos acordados demais! De olhos vigilantes e pupilas agigantadas, nos cercamos defensivos, à espreita de solucionar as tormentas que nos ventam. Enquanto isso, a insônia — essa intrusa notívaga — faz guarda para não sonharmos. “É que sonhar é um dos maiores atrevimentos humanos, é acordar-se para dentro”, diria Mario Quintana.
Sonhar é achar-se sem licença. É viajar para o lugar mais próximo de nossa verdade psíquica, humana. Em sonho damos de cara com a intimidade, é feito ajustar um espelho diante da alma. Mas nem sempre estamos dispostos a esse atrevimento. Não obstante, nos mantemos acordados, evitando o contato com nossa realidade interna. Ver-se é descuidar-se dos controles, é deixar a capa cair — essa que vestimos, em vigília, para açoitar os bichos que arrastam correntes nas nossas varandas.
O sonho é um impudico menino corajoso, que se aventura nas profundezas de nosso inconsciente. Sonhar é abrir o sótão onde moram os desejos mais estapafúrdios, onde adormece o temerário e o sublime, os traumas, as intenções contidas, os medos e as nossas necessidades. Ao adormecer abrimos a caixa de Pandora, sem saber o que vai escapar naquela noite. Por isso, sonhar pode parecer tão perigoso para alguns. Mas sabe, sonho louco mesmo é a realidade do mundo, que nos degola sonhos acordados. “A vida é como um sonho; é o acordar que nos mata” (Virgínia Woolf).
Ao terminar esse texto, só precisava que alguém, por favor, me mandasse um tanto qualquer de sono! Estou disposta a pernoitar com meus enleios mais secretos. Aventurar-me entre labirintos e escadas que descem intermináveis. Descender túneis em subsolo, encontrar caixas estranhamente caladas, ou passar a noite procurando as chaves para abri-las. Posso fugir apreensiva do que me persegue. Correr em disparada e nunca chegar. Tudo bem se meus dentes caírem, ou engravidar no caminho do sonho. Juro suportar gritar enquanto não emito som algum pela garganta. Aceito sair pra trabalhar completamente nua, enquanto cobras de tantas espécies fazem cenário por lá. Admito perder a hora e o vestido, chegando atrasada e descalça ao meu próprio casamento. Sujeito-me a lutar, no tempo em que insisto dar socos que não atingem força. Consinto, hei de quedar paralisada ansiando desesperadamente disparar.
Ah, se não for pedir muito — senhor inconsciente — desejo fechar os olhos nesse instante e acordar em sonho, dentro dos beijos apetitosos do meu amor. Voar sobre paisagens, flores, montanhas; fechar os olhos e sentir o azul do céu me percorrer. Quero atravessar o tempo e abraçar forte aquele que já partiu, deixando saudades e conversas pendentes. Será que posso, ao menos, ter o direito de sonhar que durmo dentro de um sonho? Mas se não der esse enredo, eu topo até morrer ao saltar de uma colina, e antes do chão me engolir, ganhar asas. Afinal, a gente sempre acha um jeito de estar vivo!
Não, os sonhos não podem dormir para sempre — estão apenas adormecidos na alma, aguardando silenciosamente o sonhador permitir-se sonhar. Somos costurados pelo mesmo tecido dos sonhos. Somos nossos sonhos. Essa noite, desejo mesmo é sonhar que escrevo como Leminski, e dizer: “A vocês, eu deixo o sono. O sonho, não! Este eu mesmo carrego”.