A editora Todavia iniciou neste ano a reedição da obra completa de Antonio Candido (1918-2017). Além de estudioso da literatura, ele foi um dos grandes intérpretes do Brasil, ao lado do trio célebre formado por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Até o ano que vem, serão editados os 17 volumes de uma trajetória inigualável nos campos da cultura e da política. Para leitores e leitoras, é a oportunidade de reler ou de conhecer um dos maiores escritores brasileiros do século 20.
A primeira leva da nova edição inclui “Formação da Literatura Brasileira — Momentos Decisivos” (1959), “Os Parceiros do Rio Bonito” (1964), “Literatura e Sociedade” (1965), “Iniciação à Literatura Brasileira” (1987) e “O Discurso e a Cidade” (1993). Os livros reúnem o centro do pensamento de Candido, que jamais caía no exibicionismo teórico e sempre se agarrava na leitura das obras e da sociedade. Para ele, um romance ou um poema é o que dão a chave para entender as coisas concretas do mundo.
A originalidade do autor foi a criação de um método ancorado no pensamento social e no “close reading” (a leitura cerrada) dos norte-americanos. As obras literárias deixam de ser mera ilustração de ideias sociológicas ou historiográficas — como a interpretação de Machado de Assis por Raymundo Faoro. Também Candido fugiu da onda de enquadrar a literatura como algo isolado do mundo, arte pela arte — o caminho adotado pelo “close reading”, pelos estruturalismos e pela desconstrução de Jacques Derrida.
Para Antonio Candido, é a escrita, a forma literária, que fornece o sentido de um romance, poema ou peça teatral. O exemplo maior da sua visão é o ensaio “Dialética da malandragem” (1970), em que desvendou a estrutura formal de “Memórias de um Sargento de milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, presente no livro “O Discurso e a Cidade”. Uma interpretação do Brasil que mostrou os personagens populares, agregados do século 19, se equilibrando entre a “ordem” e a “desordem” da sociedade.
Sistema literário
O livro “Formação da Literatura Brasileira” não é uma História nos moldes do que se fazia no século 19. Candido se preocupou em mostrar de que maneira se constituiu o sistema literário no país. A ideia de “sistema” requer a existência de obras, autores, leitores e tradição. Segundo o crítico, o período do Barroco teve apenas manifestações esparsas, incluindo Padre Vieira e Gregório de Matos. Sistema mesmo só a partir do chamado Arcadismo e do Romantismo. Essa é a polêmica persistente até hoje.
Na visão de Candido, o Brasil só chegou a um “sistema consolidado” com Machado de Assis, o ponto culminante do livro. O autor de “Dom Casmurro” conseguiu atingir um público amplo e inovou ao absorver a influência do passado (José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida), assimilando ainda a escrita de autores de outros países. Teria sido o primeiro autor brasileiro a resolver a dialética do local e do cosmopolita, fugindo de uma literatura amena, pitoresca e nacionalista dos românticos.
O caso Machado de Assis também aponta para a questão histórica fundamental na fórmula de Candido. Com o sistema consolidado, o Brasil atingiu um certo padrão civilizatório por meio da cultura, antes de ter uma a sociedade moderna em termos sociais e políticos. Como o país escravista produziu as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”? Esse foi o drama equacionado apenas no século 20 (ao menos como tentativa), quando os modernistas se juntaram ao projeto de Getúlio Vargas nos anos 1930.
Cultura avançada, sociedade atrasada: essa também foi a questão de países como a Rússia e a Irlanda, de onde saíram escritores extraordinários, em nações com problemas coloniais e sociais como a servidão humana. Para entender tais situações, Antonio Candido foi um inovador. Mas fez algo que jamais foi muito aceito ou entendido pelos adversários, como o poeta concretista Haroldo de Campos, que atacou Candido sem piedade no livro “O Sequestro do Barroco: o Caso Gregório de Matos” (1986).
A polêmica dos concretistas remonta a uma divisão antiga entre os seguidores de Mario de Andrade e os de Oswald de Andrade. É um empurra-empurra, uma troca de insultos que ainda ronda o debate cultural. Fato é que o jovem Candido se casou com uma prima do autor de “Macunaíma”, a filósofa Gilda de Mello e Souza, e se tornou um herdeiro do modernista. Foi pelas mãos dos escritos de Candido e seus discípulos que a Semana de Arte de 1922 ganhou reputação de evento maior da cultura brasileira.
Escola paulista
Nascido no Rio de Janeiro, numa família mineira de classe média, Candido foi testemunha de vários eventos culturais do século e conviveu com as maiores cabeças do seu tempo. Estudou Ciências Sociais na jovem Universidade de São Paulo (USP), na fase da missão francesa formada por professores iniciantes e então desconhecidos: Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Roger Bastide e Jean Maugüé. Os dois primeiros citados tornaram-se sumidades mundiais em suas áreas.
No começo dos anos 1940, Candido se juntou à esposa Gilda e aos amigos Paulo Emilio Salles Gomes e Décio de Almeida Prado na revista “Clima”. Dali saíram os críticos mais influentes de cinema, teatro, artes e literatura do país. Ao mesmo tempo, ele escrevia críticas (os “rodapés”) nos jornais paulistanos, onde compartilhou suas descobertas: os primeiros livros de ninguém menos do que Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto.
O então sociólogo migrou anos depois para a área de Letras, mantendo, porém, os olhos na literatura e na sociedade conjuntamente. Antes da mudança, Candido escreveu a tese sociológica de doutorado, “Os Parceiros do Rio Bonito” (um dos livros reeditados pela Todavia). Trata-se de um olhar para o caipira numa comunidade do interior paulista. Pessoas que ficaram paradas no tempo e empobrecidas. Ao invés de semear a nostalgia da casa grande feita por Gilberto Freyre, ele interpretou o Brasil dos pobres.
A síntese do método crítico de Candido apareceu na “Formação” e no livro “Literatura e Sociedade”. Naqueles anos, virada da década de 1950 para a de 1960, apenas o inglês Raymond Williams desenvolvia um projeto semelhante de aprofundar as leituras que relacionavam arte e sociedade. E é interesse notar que, ao mesmo tempo e em sentido contrário, o francês Roland Barthes desenhava as bases do estruturalismo que isolava o texto do mundo e que teve repercussão imensa na crítica brasileira.
Mestre dos mestres
Ao longo dos anos, a linha adotada por Candido ficou com a pecha de ser apenas um “sociologismo”, nacionalista (algo absurdo) e empobrecedora da literatura. É uma guerra que se estende até os dias atuais, haja vista as críticas duras, porém respeitosas, de Abel Barros Baptista e Luís Augusto Fischer. O ataque de Haroldo de Campos foi polemista no sentido ruim da palavra e descabido, ao chamar de “logocêntrica” (um conceito de Derrida) a visão de Candido, por ele “sequestrar o Barroco”.
Mas os adversários sempre reconheceram o valor do crítico, sobretudo nos tempos da ditadura militar. Candido acolheu na USP, por exemplo, o professor Luiz Costa Lima, então selvagemente perseguido pelos militares. O intelectual pernambucano pôde ter paz para estudar, se manter vivo e desenvolver uma obra que questiona radicalmente a ideia de “formação de literatura”. Também havia uma relação de enorme respeito de José Guilherme Merquior, que mantinha Candido num pedestal de admiração.
No horror dos anos 1970, Antonio Candido formou uma geração impressionante de discípulos: Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, José Miguel Wisnik, Davi Arrigucci, João Luiz Lafetá e Alfredo Bosi. Trata-se da nata do pensamento cultural do Brasil nos últimos 50 anos, juntamente com os “cariocas” Luiz Costa Lima e Silviano Santiago. Se houver uma arqueologia de fontes para saber quem são os maiores pensadores da cultura brasileira, lá estarão esses nomes com seus livros.
A trajetória intelectual de Candido incluiu uma atuação política forte. Nos anos 1980, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), ao lado de Sérgio Buarque de Holanda e Mário Pedrosa. O crítico literário enxergava ali o nascimento de um verdadeiro partido de esquerda democrática, sem a herança soviética. Nas entrevistas, sempre repetia a provocação de que “o socialismo é uma ideia triunfante”, pensando na adoção da social-democracia na Europa após a Segunda Guerra Mundial.
A partir da década de 1980, Candido passou a consolidar sua obra. Primeiro foi um texto encomendado para o público italiano que resultou em “Iniciação à Literatura Brasileira” (agora reeditado), que é o melhor ponto de partida para quem desconhece a obra do crítico. Ali, constam uma síntese das ideias da “Formação de Literatura” e um panorama da produção contemporânea. É, sem dúvida, um deleite para o leitor acompanhar o passeio do crítico por novos autores e novas autoras da época.
Pós-colonial
O último livro de peso foi “O Discurso e a Cidade” (1993), no qual ele reuniu sua produção de ensaios longos. Há os clássicos “Dialética da malandragem” e “De cortiço a cortiço”. Mas a joia da coletânea é “Quatro esperas” — um texto inédito em que o crítico faz uma leitura conjunta de um poema de Kavafis (“À espera dos bárbaros”), um conto de Kafka sobre a muralha da China, um romance de Dino Buzzati (“O Deserto dos Tártaros”) e uma narrativa de Julien Gracq (“O litoral das Sirtes”).
Para o escritor Modesto Carone, o texto das esperas poderia bem se chamar “o mundo-catástrofe em quatro tempos”. Não se sabe o que passou na cabeça do discreto Candido, mas ele vislumbrou o mundo em abismo dos anos 1990. Ou como ele assinalou sobre os romances e contos de José J. Veiga: era a situação da “tranquilidade catastrófica”. Nada acontece, a vida se torna uma espera sem fim, e até que se chegue a esse fim devemos pensar, escrever, lutar, resistir, fazer alguma coisa.
Muitos críticos gostam de dizer que os métodos de Antonio Candido estão superados. São os perseguidores da mais recente moda teórica — de preferência dos Estados Unidos. Mas foi o autor da “Formação” quem interpretou como se produz cultura numa nação recém-independente, ou seja, como se pode pensar o pós-colonial: quais os desafios, como se posicionar em relação ao mundo, a construção de “sistemas” e a vontade de se ter uma literatura e um país próprios.