A gente vira pedra depois que morre

A gente vira pedra depois que morre

Se conselho fosse bom, juro que eu vendia. Então, tome isso como uma espécie de palpite. Se você nunca esteve numa corrida de rua, devia experimentar. É uma prática esportiva extasiante. Quase orgástica. Quase orgástica ficou hiperbólico demais. Extremamente prazerosa. Isso mesmo: extremamente prazerosa. E qual ser humano, em sã consciência, abdicaria de sentir prazer?

Há poucos dias, participei de um evento de corrida de rua. Tinha muito tempo que eu não corria pela cidade onde nasci e me criei. Foi um reencontro e tanto. Três mil pessoas aglomeradas, vacinadas, sorridentes e com o astral batendo nas grimpas. Não faltava o apoio dos desconhecidos. Em cada esquina, uma palavra de motivação para continuar em frente. Em cada subida íngreme, um grito de guerra para não esmorecer. A impressão que se tinha é que todos estavam, de certa forma, irmanados pela positividade. Para completar o deleite, a corrida sucedeu à noite, com direito a céu estrelado, lua cheia e uns caras tocando sax durante o percurso. Um luxo.

Para se organizar um evento grande como é caso de uma corrida de rua, demanda-se planejamento, como o bloqueio temporário do trânsito, por exemplo. Dentro desse contexto, interromper o vai-e-vem frenético dos automóveis tem um significado peculiar e, de certa forma, consiste num exímio ato de rebeldia. Algo do tipo: “Ei, estamos aqui, tomando de volta essa cidade que pertence às pessoas, não aos carros”.

Se você ainda não virou fumaça, se nunca participou de uma corrida de rua, devia considerar a possiblidade, ainda mais, se anda sedentário, se pressente as pilhas enfraquecidas, se está com o peso corporal acima do esperado para a sua altura. Comece pelas caminhadas ao ar livre. A cidade está repleta de bosques e de praças que anseiam por pessoas. Aliás, a natureza tem predileção pelos perturbados. Caminhe pequenas distâncias e vá aumentado a carga de exercícios gradativamente. Depois, comece a trotar. Não precisa ter pressa. Não vai querer correr tudo num único dia.

Se você tem mais de 35 anos de idade, é prudente fazer antes um checape médico voltado para a saúde cardiovascular. Seria péssimo deparar com o seu corpo estendido no asfalto, coberto com jornais repletos de más notícias. A boa notícia é que o ambiente das corridas de rua é sempre amistoso, festivo e, acima de tudo, inundado de solidariedade, de camaradagem e de humanismo. Precisamos resgatar um bocado desse humanismo perdido, para lembrar que nunca nos odiamos num nível tão hard. Do ponto de vista emocional, a rivalidade política dos últimos anos nos adoeceu. Estamos terrivelmente famélicos de afeto. Portanto, nada melhor do que reconciliar, do que suar os corpos, enquanto ainda dá tempo, lado a lado, sob aquele famoso sol que nasce para todos.

Não sei quanto a vocês, mas, ainda gostaria de morrer velho, lúcido e safado. Safado, no melhor sentido, do tipo fogoso, vívido e querendo um pouco mais de amor. Você almeja se tornar um idoso autossuficiente? Dentre tantas coisas, como levar a vida na flauta e secar o bagaço das frustrações, comece a correr o quanto antes. As pedras, coitadas, nunca correm, apesar de estarem sempre assentadas pelo caminho, à espera de que algum poeta calvo as descreva com um pouco mais de lirismo e de sensibilidade. Enquanto vivos, jamais seremos pedra, senão, por dentro. E quem poderia nos impedir de sermos poetas, senão nós mesmos, homens e mulheres treinados para nos tornarmos empedernidos?

Diz-se que o coração é o órgão vital responsável pelos sentimentos. Ora, um coração não sente bulhufas. Ele bombeia, cadente, escravizado pela esperança, vinte e quatro horas por dia, todo santo dia, como um soldado numa guerra já perdida, tomado por diligência e fé, até mesmo, um certo grau de desespero, frente àquelas situações irreversíveis, como a falência múltipla dos órgãos, quando nada mais dá certo, quando nada mais funciona a contento, quando nada resta a fazer senão parar de bater dentro de um corpo inexoravelmente falido. Bobo, altivo e fiel às suas funções primordiais, o coração continua a bombear o sangue, mesmo depois que o cérebro morre. Portanto, é o coração quem fecha a porta, ao apagar das luzes.

É inevitável lidar com as trevas cotidianas. Por isso, buscar o bem viver importa. Importa mais do que dinheiro, por mais que se insista no contrário. É líquido e certo que, um dia, a graça, o riso, o brilho no olhar, a energia vital que, enfim, nos move, tudo vai se exaurir. Secaremos aos poucos, dentro dessa fornalha chamada vida, como um ribeirão que evapora sob a linha do tempo, de forma dramática, inexorável, até se transformar em lama. Depois, o pó. Por fim, quem sabe, com um bocado de sorte, pedra. Então, é só isso. Eu acho que a gente vira pedra, depois que morre. Melhor correr enquanto ainda dá tempo.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.