Era uma vez um lindo casal de gêmeos, João e Maria, que cresceu rodeado de amor e carinho, com que só um príncipe e uma princesa poderiam sonhar. Dentre muitas coisas, os papais lhes ensinaram a amar e respeitar o próximo. Acima de tudo, repetiam que a coisa mais preciosa que um vivente pode ter é a liberdade de escolher ser quem quer ser.
Os irmãozinhos cresceram articulados, independentes, geniosos e inteligentes, até que, um dia, começaram a ir à escola. Lá conviveram com seus iguais de forma sociável e saudável. Nem o uniforme tinha distinção: ali, todos tinham os mesmos direitos. Um dia, os hormônios dos agora crescidinhos irmãos explodiram como um vulcão. Tudo era novidade, tudo tinha a cor da carne viva e pulsante.
Rapidamente, descobriram que os países baixos, até então adormecidos, poderiam ser maravilhosos playgrounds. Tornaram-se desbravadores de florestas tropicais, poliglotas que só se contentavam em conhecer a língua se fosse in loco. Liam muito, adoravam estudar e, entre filmes, livros e corpos suculentos, tornavam cada conversa uma viagem sedutora, honesta e visceral. Curtiam ir a fundo, sorrir com os olhos e Rita Lee. Nadavam de braçada no farto mar de almas vagantes e terráqueas que recebiam de bom grado seu cósmico e infinito colorido. Respiravam liberdade, repulsavam as máscaras que lhes ofereciam os homens de muito pudor. Cada gota de seus corpos era transparente. Dispensavam fantasias porque não lhes eram necessárias, afinal os papais ensinaram a eles que a coisa mais preciosa que o Homem pode ter é a liberdade de escolher ser quem quer ser. E eram.
Um dia, o pequeno João conheceu uma moça diferente das demais. Era dinâmica como ele e lhe ensinou coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar. Os outros risos, corpos e espíritos pareciam ensaios perto dos dela e João sabia que nunca mais quereria ninguém. Todos ficaram felizes porque eles decidiram se juntar sob-as-bênçãos-de-Deus-amém. João ganhou whisky de primeira em sua despedida de solteiro, enquanto as mulheres de sua vida choravam ocultamente as pitangas, lamentando não terem tido o poder de prendê-lo. “Aquelazinha” nem era lá essas coisas, mas uma baita sortuda que teria na cama um homem experiente que saberia exatamente o que fazer e como. Deve ter sido macumba. Deve ter sido chá de calcinha, Deus me livre. Mas a moça, afinal, havia segurado João, um homem tão livre e vivido. Ela tinha mesmo algum mérito. Ele havia aquietado. Nada como um amor de verdade para trazer paz ao coração dos homens. Vida longa aos dois.
A pequena Maria, no casamento de seu irmão, também conheceu alguém especial. Era um moço culto, interessante, cheio de ideias liberais e de vida plena. Conversaram a noite toda sobre o mundo, e, ao primeiro raiar de sol, deixaram que os hormônios escrevessem história nos corpos um do outro, numa inexplicável sinergia que fez os dois se apaixonarem. Saíram logo no outro dia e — rompante de loucura pueril! — falaram até em se casar naquele mês! Ele queria que ela fosse a mãe de seus filhos, mas não se deu ao trabalho de perguntar se ela queria. Só que os amigos do moço tinham conhecidos que tinham vizinhos que já haviam percorrido as estradas de Maria. Alguns deles tinham colegas de trabalho que também já haviam passado por lá e até contaram detalhes da intensa travessia. A matemática gravada nas curvas de Maria começou a incomodar aquele moço, que já não era mais gentil. Maria era igual às outras afinal. A família dele repetia que era rodada, não se valorizava. Ela não compreendia aquilo tudo, porque sequer o conhecia quando esteve com os outros e, agora, só queria estar com ele. Mas aquilo não importava, ela era uma bela de uma puta. Também, com aquele jeito extravagante de quem dava na primeira noite, já era de se esperar que tivesse um histórico condenável. Tá vendo? Fica lendo esse tanto de pornografia hippie, dá nisso.
Maria acordou com o telefone tocando sem parar. Havia uma dezena de bonitas fotos de seu nu em todos os ângulos na internet. Mas também quem mandou ser tão burra e se deixar fotografar, não é? Quem pariu Mateus que o embale.
Maria ficou pra baixo um tempo, mas não muito. “A coisa mais preciosa que um vivente pode ter é a liberdade de escolher ser quem se quer ser”, disse-lhe tantas vezes sua mãe. Ela era o que escolhera e tinha orgulho de sua estrada colorida, das histórias que construíra e do ser humano em que se tornara. Sentia pena pelos que escolheram caminhos turvos dedicados à vigília da vida alheia. Sentia pena do moço que precisava ser validado por meio mundo para que se convencesse de sua felicidade. Perdiam tanto tempo com os outros que se tornavam ocos e ressecados, definhando num deserto fúnebre a se alimentar com conta-gotas que derramava novidades fresquinhas como pão. Enquanto se alimentavam de sua roupa, vida e história, Maria se nutria da vida em si e não da dos outros.
Lembrou-se do uniforme idêntico que meninos e meninas usavam na escola e de como a vida era democrática até então. Que pena uma grande parcela da humanidade gastar o dom da vida em uma busca implacável pela pequenez em grau máximo, obtendo-a com sucesso. Colocou sua melhor roupa, passou o melhor batom e saiu de alma lavada. Aquele problema não era mais dela.