Indicado a 7 Oscars, uma das mais belas histórias de amor do cinema e da literatura, está na Netflix Divulgação / Focus Features

Indicado a 7 Oscars, uma das mais belas histórias de amor do cinema e da literatura, está na Netflix

Poucos enredos na história das artes dramáticas enfronham-se em si mesmos como “Desejo e Reparação”, o drama de época de Joe Wright nascido da pena de Ian McEwan. Um dos textos mais sofisticados de romancistas vivos, o livro de McEwan, cheio de guinadas num crescendo até desaguar na revolução indomável que se estende de dada altura do roteiro de Christopher Hampton à conclusão. Tudo no filme reproduz à perfeição os detalhes pensados pelo escritor, que em “Reparação” (2001, Companhia das Letras) dá a ideia de ter se transportado no tempo rumo à Inglaterra de 1935, onde permanece por alguns instantes, mas logo avança para outra época e outros lugares e progride um tanto mais ainda, numa dinâmica própria e arrojada para uma narrativa tão sóbria, que se furta a sempre corresponder aos anseios do público.

Todas as idas e vindas a que Wright submete seu filme estão de alguma maneira permeadas pela metalinguagem. Hampton extrai do texto de McEwan o fragmento que, com intensidade variada, ora quase óbvio, ora tão sutil que vai se misturando à paisagem realçada pela luz e tons pastéis da fotografia de Seamus McGarvey, conduz a trama. “As Provações de Arabella”, peça de Briony Tallis, vê a luz em meio às movimentações dos criados para um jantar para dez comensais em poucas horas.

Nesse primeiríssimo ato, Briony, incorporada com desvelo por uma Saoirse Ronan já espantosamente madura, é quem dá as cartas, e, também por essa razão, ninguém se sente verdadeiramente escandalizado quando da primeira grande sublevação da história. O que é de fato sublime e estarrecedor é assistir a como o diretor trabalha um a um todos os elementos cênicos e retóricos que se lhe apresentam. A impertinência de uma abelha tira Briony do sossego indolente com que se entregava a uma conversa meio desconjuntada com Lola Quincey, a hóspede dos Tallis vivida por Juno Temple. Lola é recebida com os irmãos gêmeos Jackson e Pierrot, de Charlie e Felix von Simson, porque os pais deles estão imersos num dos desquites mais rumorosos da jurisprudência inglesa, e talvez isso tenha alguma influência sobre o que acontece quando a personagem de Ronan, num ensaio rigoroso para a Jo March de “Adoráveis Mulheres” (2019), chega até a janela e vê a irmã, Cecilia, e Robbie, o faz-tudo da propriedade, juntos, saboreando cenas idílicas à beira de uma fonte.

Keira Knightley e James McAvoy assumem o comando de “Desejo e Reparação” em visível harmonia, como se no baile do casamento que Cecilia e Robbie jamais hão de consumar. Apesar de criada com tudo quanto os pais puderam encontrar de mais fino, de mais exclusivo e de mais categórico para a educação de uma garota de cem anos atrás — para reproduzir o modelo patriarcal de esposa, mãe e dona de casa, nessa ordem —, a mocinha de Knightley, a irmã mais velha de Briony, encara o subalterno interpretado por McAvoy exatamente como ela, um homem dotado de vontade, de apetites do corpo e do espírito, de vida, afinal (embora numa conversa ligeira com a caçula, as duas deitadas sobre um campo de flores num dos escassos respiros de um filme progressivamente mais denso a cada lance, a um passo do esgotamento da audiência, Cecilia confidencie a Briony que não quer mais nada com o pretendente secreto porque são de “meios diferentes”). Talvez, de novo, essa revelação um tanto artificiosa também contribua para que a irmã mais nova volte a fantasiar sobre a conduta de Robbie para com a namorada, desta feita na biblioteca da mansão, o que por seu turno dá azo à maior das ignomínias a que lança o empregado, envolvendo Lola e Paul Marshall, o industrial vivido por Benedict Cumberbatch.

Quatro anos depois, no terceiro ato do filme, quando estão os três mergulhados, Cecilia, Briony e Robbie no horror da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como uma forma de expiação involuntária de cada qual por seus pecados, reais ou não, Wright vê na invasão da Normandia a oportunidade de uni-los outra vez, com diálogos que, como se vai ver, são apenas a fantasia de uma reconciliação. Passados mais sessenta anos, Vanessa Redgrave na pele de uma Briony idosa, finalmente esclarece o porquê de tanto desengano, de tanta vocação para a infelicidade, restando subjetivo numa das histórias mais enigmáticas já contadas, a paixão recolhida de uma mulher leviana, de uma alma maldosa, quiçá arrependida, e assim mesmo indigna de confiança. Mas não de um derradeiro indulto.


Filme: Desejo e Reparação
Direção: Joe Wright
Ano: 2007
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.