Meninas e meninos, eu li “Carta a D. — História de um Amor”, de André Gorz, e posso garantir que esse pequeno livro possui uma das mais belas páginas iniciais de toda literatura escrita no século 21. Pequeno livro na extensão, mas um volume considerável na intensão psicológica e dimensão humana. Primeiramente, trata-se de uma prestação de contas com a própria consciência.
Seria banal definir “Carta a D.” como uma carta aberta de um autor para sua musa. É muito mais um pedido de desculpas desse autor para sua companheira, que também foi mecenas, protetora, pilar e secretária. É uma carta de amor? Sim. Ridícula, como Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, definia toda carta de amor? Definitivamente, não. “Carta a D.”, a despeito de suas intenções declaradamente viscerais, é uma peça literária cuidadosamente composta, repleta de passagens esteticamente memoráveis.
O austro-francês André Gorz foi um dos mais influentes filósofos, jornalistas e escritores europeus do pós-guerra. Não começou no topo. O livro é uma crônica de sua difícil trajetória de conquista do cenário intelectual francês, tentando escrever textos profundos enquanto ganhava a vida saltando de um emprego mal remunerado para outro, durante anos e anos. Não teria conseguido se não fosse sua esposa inglesa Dorine, a D. do título. Ela sustentou André Gorz, material e psicologicamente, em diversas fases do início de sua carreira. Tendo feito a incerta opção de se casar com um escritor, Dorine fez de tudo para que ele pudesse edificar seu projeto literário. Muitas vezes, sacrificando-se ou anulando-se no processo. André Gorz só teve essa consciência tardiamente. A obra, publicada em 2006, também é uma reflexão do motivo de D. estar “tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida”. Pior do que isso, em mais de uma ocasião, André Gorz caricaturou D. em seus textos, mesmo tendo o “sentimento de não estar à sua altura, achava que você merecia mais”.
Se “Carta a D.” tem um problema é o fato de, no final das contas, ser muito mais sobre o próprio autor do que sobre sua destinatária. Poderia ser diferente? De uma forma geral, escritores são egoístas e autocentrados, mesmo em seus momentos de ternura. Dorine sabia disso, fez sua escolha e, aparentemente, não se arrependeu dela. Mas, André Gorz precisava mesmo de uma redenção. Mas talvez tenha ido longe demais.
Um ano depois da publicação do livro, o casal foi encontrado morto em sua casa na cidade de Vosnon, no oeste da França. Suicídio. Ele tinha 84 anos, ela 83 e sofria de uma grave doença degenerativa. Deixaram um bilhete explicando os motivos do ato extremo: não podiam viver sozinhos, fosse quem fosse primeiro.
Talvez com o suicídio sendo planejado, em “Carta a D.”, evocando Tristão e Isolda, Hero e Leandro e Romeu e Julieta, André Gorz escreveu que “estar completamente apaixonado pela primeira vez, ser amado de volta, era aparentemente banal demais, e privado demais, comum demais: não era uma matéria apropriada para me fazer atingir o universal. Um amor naufragado, impossível, isso sim, ao contrário, rende a nobre literatura”. André e Dorine, tão felizes em vida que causavam inveja, construíram seu destino trágico e, por extensão, literário. Ganharam lugar ao lado das meninas e meninos Julieta, Hero, Isolda, Romeu, Leandro e Tristão.
Por fim, posso garantir que esse pequeno livro possui uma das mais belas páginas finais de toda literatura escrita no século 21.
Livro: Carta a D. — História de um Amor
Autor: André Gorz
Tradução: Celso Azzan Jr.
Páginas: 103
Editora: Companhia das Letras
Nota: 8/10