Terça feira chuvosa e fria, numa cidade habitualmente quente. O cenário era praticamente um convite para assistir a um dos filmes exibidos numa Mostra local de Cinema, que ocorria naquele período. Talvez não uma comédia dramática, de produção chinesa, numa sessão que adiaria o almoço, mas, como minha restrita disponibilidade de horário não me oferecia muitas opções, acabei superando o estranhamento inicial daquela sinopse e, na companhia de meu marido e filho de 11 anos, me aventurei pela sala de cinema.
O filme escolhido foi “O Ciclo da Vida” (Fei yue lao ren yuan), dirigido por Zhang Yang, que retratava o cotidiano de um grupo de idosos, residentes em uma casa de repouso no norte da China, os quais, liderados pelo velho Zhow, resolvem participar de um concurso televisivo de talentos e, para tanto, empreendem uma jornada em prol desse objetivo.
Já nos momentos iniciais, percebemos o tom da produção cinematográfica: cenas cômicas, quebradas por dramas íntimos, diálogos provocadores e uma boa dose de reflexão. O riso inocente e as histórias prosaicas parecem funcionar como um atenuante do impacto dos corpos debilitados, das mãos trêmulas, das consequências das doenças crônicas, das limitações, do abandono, e das tragédias pessoais e coletivas.
Trata-se de um filme de cenários simples, sem efeitos especiais, de atuações não mirabolantes e trilhas sonoras singelas (com exceção do clássico norte americano “Y.M.C.A”, da banda Village People, que aparece numa cena impagável dos velhinhos dançando ironicamente ao som de versos como “It’s fun to stay at the Y-M-C-A”, “É divertido ficar na Associação Cristã dos Moços”, numa tradução livre). Por outro lado, a singeleza da obra não extrai sua sensibilidade, nem seu teor crítico e reflexivo, o que pode, por exemplo, ser constatado nos usos dos vocábulos “velho” e “velha”, adotados pelas personagens do filme. De antemão, essa terminologia, que nos parece muito mais digna e provocativa, pode desconcertar a sociedade brasileira, acomodada a eufemismos como “terceira idade” ou “melhor idade”.
No longa-metragem, as velhices (propositadamente grafada no plural, dada a sua diversidade e não linearidade) e a forma como lidamos com elas são colocadas em questão. Impossível sair ileso. E difícil não se lembrar da pergunta incômoda de Mia Couto: “Quanto estamos construindo no presente uma sociedade grávida de futuro?” Ou no, mínimo, o que esperamos do futuro, para além da utopia da eterna juventude e vitalidade? Ou ainda, como pensamos na velhice como quem pensa no próprio destino?
“O Ciclo da Vida” não trata de um tempo cronológico apenas, ainda que os protagonistas do filme tenham juntos mais que 10 séculos de vida. A questão primordial está, talvez, expressa nos gritos do vizinho de quarto dos “velhos” Ge e Zhow, o qual, amarrado a uma cama, proclama em momentos distintos: “Eu ainda estou vivo”! e “Voe!”. Essas declarações constituem tanto uma súplica, de quem precisa afirmar cotidianamente sua existência quanto uma ordem subversiva contra tudo o que nos ataram à velhice. Nesse caso, ter algo pelo que lutar e sonhar parece ser a tônica da sobrevivência, nem que para isso tenha que se desafiar os limites do próprio corpo/mente ou a pseudo-autoridade dos filhos e cuidadores.
E nessa viagem em busca do ideal coletivo de se apresentar em um concurso televisivo, somos telespectadores das histórias e motivações individuais das personagens. Para além de uma viagem física, a bordo de um ônibus velho por estradas bucólicas da China, a jornada dos velhos é uma busca interior, um mergulho à subjetividade, num processo em que nossa posição confortável de quem assiste é abalada pela necessidade de rever nossos valores e, olhando para o espelho da velhice que nos espia e atrai, assumirmos a humanidade que nos constitui.
Enfim, naquela tarde fria, fomos surpreendidos pela sensibilidade de uma história cinematográfica, que nos colocou de frente para a efemeridade da vida e para a descoberta de como seu ciclo quase derradeiro é capaz de extrair lágrimas discretas dos olhos de quem mal acabou de sair da infância ou de quem já desconfiou de que não há tanta juventude pela frente. E foi assim que, em meio à aclamação da jovialidade e da vitalidade do corpo, eu comecei a aprender que ainda que não haja firmeza nas pernas ou a memória falhe, o coração é teimoso e que o sol continua a nascer por detrás do mar, ainda que nossos olhos não se deem conta desse espetáculo.