Cantar em tons altos e potentes pode ter salvado a vida de Bono Vox. Nascido Paul Hewson e com a voz no nome artístico, ele recebeu em 2016 o diagnóstico de um aneurisma na aorta, ou seja, uma bolha na principal artéria do corpo humano. Se ela estourasse, o coração teria uma parada súbita e o mataria de imediato. Mas, segundo o médico que o operou, o cantor tinha 130% da capacidade respiratória de uma pessoa em sua idade, o que permitiu a ele resistir à fase mais crítica do tratamento.
“Sou um tenor embaixo d’água. Sinto meus pulmões se enchendo. Estou me afogando. Estou alucinando. Tenho a visão de meu pai num leito de hospital e eu dormindo ao seu lado, em um colchão no chão”, relembra Bono, em suas memórias “Surrender — 40 Músicas, uma História”, lançadas mundialmente no ano passado. A crise de saúde é o ponto de partida do livro, num leito de hospital de Nova York. As histórias da vida pessoal e do U2 vão se sucedendo.
A escrita do livro é a voz de Bono em tom baixo e bem distante dos berros nos refrões de músicas como “Pride (in the name of love)”. Trata-se de uma conversa ao pé do ouvido do leitor ou da leitora. Cada um dos 40 capítulos traz o título de uma música conhecida do U2. Ficamos sabendo, por exemplo, que a canção “Cedarwood road” se refere à rua onde ele morava em Dublin, na Irlanda, com o pai e o irmão. Já “Iris (hold me close)” foi a homenagem à mãe que morreu quando ele tinha 14 anos.
“Tenho pouquíssimas lembranças de minha mãe, Iris. Meu irmão, Norman, também não se lembra de muita coisa. A explicação simples é: depois que ela morreu, nunca mais se falou dela em nossa casa. Temo que tenha sido pior do que isso. Raramente voltamos a pensar nela. Éramos três homens irlandeses e evitamos a dor que sabíamos que viria ao pensar nela e falar sobre ela. Em 2014, no álbum ‘Songs of Innocence’, eu me permiti olhar para o passado e levantar pedras sob a quais sabia que havia seres rastejantes assustadores. Em ‘Iris’ tentei tecer os fios da memória que eu tinha da minha mãe”, conta.
Bono reconstrói a vida na juventude e diz que começou a escrever canções aos 18 anos. “Chamei a [primeira] música de ‘Out of control’ porque me dei conta — e Fiódor Dostoiévski pode ter dado a mãozinha nisso — de que nós, humanos, temos pouca ou nenhuma influência nos dois momentos mais importantes da nossa vida: nascimento e morte. Parecia o tipo certo de foda-se para o universo que uma boa música de punk rock exige”, lembra o cantor, que na época ouvia os Ramones e lia o romance “Crime e Castigo”.
Trilha sonora
Agora, em março de 2023, o U2 lançou o disco “Songs of Surrender”, que complementa as memórias de Bono. Assim como o livro, foram escolhidas 40 músicas já muito conhecidas para versões em “baixo tom”. Violões, pianos e instrumentos de corda de orquestra tomaram o lugar da pulsante bateria Larry Mullen Jr, da força do contrabaixo Adam Clayton e da guitarra nervosa de The Edge. De novo, é um cantar ao pé do ouvido, um sussurro, quase como um segredo que se revela aos amigos e às amigas.
A música do U2 é uma das mais marcantes da virada do século 20 para 21. O auge criativo foi o disco “Joshua Tree” (1987). Esse trabalho projetou o grupo de forma definitiva no mundo e, sobretudo, nos Estados Unidos. Tal qual Beatles e Rolling Stones, os irlandeses do U2 cruzaram o Atlântico para se inspirar e se consagrar. Nessa viagem rumo à América, eles foram acompanhados pelo cineasta alemão Wim Wenders, numa colaboração que marcou época e que reverbera na atmosfera do disco “Songs of Surrender”.
“Sam Shepard havia escrito o roteiro do filme em close e panorâmica de Wim Wenders, ‘Paris, Texas’, que você poderia colocar no fundo enquanto estávamos gravando as músicas [de Joshua Tree]”, relata Bono. O cantor diz que, na época, ele visitava livrarias e descobria uma série de poetas, dramaturgos e romancistas dos Estados Unidos, como Flannery O’Connor, Shepard e Allen Ginsberg.
Na epígrafe do livro “Surrender”, aparecem versos de Bob Dylan, símbolo maior da cultura norte-americana: “Ouço passos antigos como o movimento do mar/ Algumas vezes me viro, há alguém lá, noutras sou apenas eu”.
“[Joshua Tree] não era para ser um álbum conceitual, mas tínhamos um conceito vago no fundo que guiava tanto a letra quanto a música que eu chamava de ‘As duas Américas’, que deveria ser uma visão conflitante e contrastante, não apenas do Norte e do Sul, rica versus pobre, nativa versus nativista, mas talvez mais importante, da América real versus a América imaginada”, explica Bono no livro.
Entre culturas
O U2 e Wenders mergulharam em viagens pelos Estados Unidos nos anos 1980 e, depois, foram se reencontrar na Europa da década seguinte. O choque cultural dos europeus que se fascinam pelas mitologias do Novo Mundo, num olhar crítico e de admiração ao mesmo tempo. No caso, o encantamento vem da paisagem do deserto, a terra da fronteira, da conquista, a violência e, também, a desolação.
“É algo profundo. Mais profundo do que a ideia de Wim Wenders de que a América colonizou nosso inconsciente por meio do cinema e da literatura, da TV e da música. Mais profundo do que o modo como o rock norte-americano moldou uma geração antes de mim e todas depois”, assinala Bono, que deixou suas primeiras impressões de viagem no documentário “Rattle and Hum” (1988).
Foi no parque próximo a Los Angeles, no deserto de Mojave, que Bono e os companheiros do U2 deram de cara com um arbusto para batizar o álbum de 1987: “The Joshua Tree”, a árvore de Josué. O disco não esconde o espírito gospel e liberador da criação — o pai de Bono era católico e a mãe, protestante. As vozes cantam alto como se fossem preces em “I still haven´t found what I´m looking for”, “Red hill mining town” e até clássico “With or without you” — todas elas recriadas no disco “Songs of Surrender”.
Em “Joshua Tree”, os estilos do blues, gospel e country dos Estados Unidos são filtrados pelo som europeu, com os dois pés fincados na eletrônica, ruídos, a sofisticação musical. Uma sonoridade entre duas culturas, dois modos de ver o mundo, reunidos no disco. Saiu uma coleção de canções melancólicas, puxadas pelos gritos de Bono e as guitarras agudas de The Edge. Parece um grupo de pregadores em viagem pelo deserto. Trilha sonora de um “road movie”, como se vê já nas fotos de capa do disco.
O road movie é uma forma narrativa do cinema contemporâneo. O personagem faz a viagem de aprendizado e sofre um processo de transformação. O livro “Songs of Surrender” carrega o clima da travessia, de relato das andanças até o momento crítico na cama de um hospital. Wenders é um mestre do road movie, o que se vê bem nos filmes “Alice nas Cidades” (1974) e “Paris, Texas” (1984). Neste último, o andarilho Travis revela sua história que esconde mil dores: o reencontro com o filho e a ex-mulher.
Wenders tem uma fixação pelo choque cultural entre Estados Unidos e Europa, assim como o U2. Eles acabaram se encontrando na Berlim pós-muro, entre 1991 e 1993. Lá o U2 fez os discos “Achtung Baby” e “Zooropa”, nos quais a eletrônica está na linha de frente. E Wenders rodou os filmes “Até o Fim do Mundo” e “Tão Longe, Tão Perto”, contendo músicas dos irlandeses na trilha sonora. Foi uma encruzilhada de um road movie musical e cinematográfico.
Em 2000, Wenders filmou uma história criada por Bono: “The Million Dolar Hotel”. Prova de sintonia muito forte entre eles, sendo reforçada no livro “Surrender”: “O filme ‘Asas do desejo’, de Wim, em que um anjo se apaixona por uma simples mortal, virou meu filme favorito. Fiquei tão dividido com relação à ideia de ter que escolher entre o amor e a imortalidade que isso começou a me inquietar no meu próprio trabalho”.