Não estou gostando nada nada nada dessa história de mamãe voltar a fazer aulas de dança do ventre. Eu sei que isso não é da minha conta, que não posso mandar na vida dela como ela já mandou na minha, um dia, quando fui criança. Se quiser dançar, dance, mamãe. Mas, por favor, se não for pedir muito, ao menos tape o ventre com alguma peça avulsa do seu vestuário de bailarina porque, senão, quem vai dançar sou eu.
Depois de me contar a novidade, ela balança de tanto rir na sua confortável cadeira com fios de plástico colorido, oriunda do século passado, assim como nós. Pela antiquada TV de tubo, acompanhamos a notícia de uma mulher de 40 anos que foi hostilizada nas famigeradas redes sociais da internet por um trio de estudantes universitárias, devido à idade “avançada demais” para cursar a faculdade. O comportamento “atrasado demais” das mancebas não podia ter sido mais emblemático, por se tratar de um grupelho de mulheres praticando etarismo contra outra mulher.
— O que essas desmioladas pensam que estão fazendo? — mamãe pergunta, sem disfarçar a indignação pelo “fogo amigo” das moçoilas.
Na senilidade, as pessoas ficam mais comunicativas, mais tagarelas, gostam de contar e de recontar histórias de vida reais ou inventadas. O causo da tia Natalina, por exemplo, não sei se aconteceu de verdade ou se foi obra de ficção da sua cabecinha octogenária. Mamãe conta como sucedeu o dia em que tia Natalina, prestes a entrar na menopausa, deu à luz ao filho caçula, o décimo da prole, numa fazenda onde a família residia.
— A mulherada de hoje anda muito mole — ela conclui, no auge dos seus 85 anos. Quem poderá contradizê-la, senão, outra idosa envergada de autoridade? Calo-me. Escuto porque tenho juízo. No dia da desova, tio Nego passou raiva excessiva em tia Natalina. Tanto aborrecimento acabou precipitando nela as contrações do trabalho de parto. A bolsa das águas rompeu, despejando uma cachoeira fisiológica que inundou o piso da cozinha. Tio Nego arregalou os olhos, pediu para ela se acalmar e avisou que ia buscar a parteira.
Tia Natalina disse que não precisava da ajuda de ninguém, muito menos, dele, o esposo que já tivera feito o papel de parteiro, pelo menos duas vezes, ao amparar o nascimento dos filhos ali mesmo naquele sítio, na raça e na coragem, sob luz de lamparina. O xucro fez menção de adentrar o quarto do casal, mas, foi enxotado pela parturiente, que já marejava a testa com gotículas de suor, judiada pelas cólicas que começavam com torções excruciantes no umbigo e terminavam com coices de burro na região lombar.
Antes de se isolar, a matrona fez a assepsia da tesoura de cortar umbigos usando aguardente. Encheu uma bacia com água morna esquentada na trempe. Catou um pedaço de corda para morder. Colocou uma toalha limpa no sovaco e se trancou no quarto do casal. Apesar das advertências, tio Nego montou no cavalo em pelo e galopou em busca da parteira que morava no sítio vizinho. Quando retornaram, encontraram a porta do recinto ainda trancada e um silêncio sepulcral lá dentro. Nada de gritos, de gemidos, de preces e de ladainhas.
— Comadre Natalina, abre já essa porta, criatura. Eu vim aqui para lhe ajudar — a parteira insistia, enquanto tio Nego, acocorado no meio da cozinha, mantinha o olhar perdido, na direção do nada, remoendo-se pensamentos de remorso, matutando sobre as consequências do seu ato viril que culminaria, quem podia garantir o contrário, num castigo divino.
Não teve Cristo que a fizesse abrir a porta. Passado algum tempo, ouviram um miado de gato que bem podia ser o choro de uma criança miúda que tivesse acabado de vir ao mundo. A tensão cresceu entre os adultos. A molecada já tinha sido tocada para o lado de fora da casa, onde pulavam como cabritos, brincavam de brigar e judiavam das criações apenas para se divertir.
De repente, o silêncio completo preencheu mais uma vez o ambiente. Ficaram naquele drama interminável, imaginando o pior, como sempre acontece a um ser humano, sem saber o que fazer, até que a taramela girou no vazio e a porta de madeira se abriu, exibindo tia Natalina em pé, suada, o cenho fechado, a segurar o recém-nascido que lhe chupava uma das tetas flácidas.
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo — disse a parteira.
— Para sempre seja louvado — respondeu tio Nego, saindo de casa para fumar um palheiro.
Tia Natalina foi tomada como um exemplo de mulher diligente que não tolerava desaforo, que não aceitava cabresto do marido, que não carecia de receber ordens de quem quer que fosse para tocar os afazeres domésticos de uma vida vivida com extrema simplicidade numa propriedade rural que ficava longe das cidades.
— Se fosse tia Natalina, no lugar daquela senhora, saía no braço com as franguinhas insolentes — sentenciou mamãe, a respeito das calouras abiloladas.
— São apenas adolescentes, mãe. A senhora sabe como isso funciona. Nessa idade, a gente fala um monte de asneiras, faz um monte de bobagens, por imaturidade e por falta de vivência. Não precisava dessa repercussão toda na mídia não. Veja só: já estão até defendendo a expulsão das mocinhas pela faculdade, por causa dessa tremenda gafe. Isso não passa de exagero, a senhora não acha?
— Ainda penso que elas mereciam tomar uns tabefes da quarentona. Isso lá é coisa que se diga de outra mulher? O povo ficou louco de vez, desde que esse diabo do Bolsonaro escapuliu da caixa de Pandora.
Enquanto coa o café no filtro de pano, mamãe muda de assunto e diz que, neste ano, tudo vai ser diferente, que vai recuperar o tempo perdido por causa da pandemia de coronavírus. O medo de morrer esvaneceu. As vacinas no braço estão em dia. A agenda anda repleta de atividades que vão desde as aulas de teatro no SESC, perpassando pelo famigerado curso de dança do ventre com a professora Cláudia — uma preta com pernas hipnotizantes — até as oficinas de artes manuais da secretaria municipal de cultura, as tertúlias de poesia falada na casa do Bariani, o curso de contadores de histórias que a comadre Iolanda indicou e aquele treinamento da agência rural para ensinar como fazer o manejo correto do cerrado degradado, por meio da agrofloresta, ocasião em que pretende aprender as modernas técnicas para o cultivo sustentável de uma pequena propriedade rural da sua propriedade.
Ali na roça, pisando a mesma terra onde nasceu pelas mãos confiantes de outra mulher, uma parteira que enxergava de um olho só, vai plantar mudas de árvores, cujos frutos serão saboreados pelas bocas das gerações futuras. Por ela, tudo bem. Se isso não for um ato de rebeldia, se isso não for uma declaração de amor pela vida, não sei como se chama.