Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais da vida. Entre outros pontos, é fulcral no pensamento de Heidegger a valorização das muitas descobertas que o homem faz no decorrer de uma vida que sempre lhe parece demasiado curta (e o é mesmo), mas decerto ganha outras cores, um viço inesperado, uma força qualquer poderosa o bastante para fazê-la desviar do precipício ao passo que nos instiga a recorrentemente testar limites novos, como se mais do que oxigênio, água e pão, tivéssemos de nos suprir primeiro de uma boa matula de acaso. A irrequietude do homem frente ao passar do tempo — incansável, inclemente, cruel — e sua cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória, dá ao gênero humano das poucas certezas que se consegue garimpar desse campo lodoso e edênico que é a vida: jamais se deve deixar passar uma boa oportunidade.
Poucas ideias remontam à imagem de aproveitamento do mundo, deste e mesmo de algum outro, em que passam a habitar — agora encantados, como diria Guimarães Rosa — aquelas mulheres e homens raros que ocuparam lugar de destaque na Terra, que uma narrativa de linguagem escorreita, plena de líricas alegorias, sobre a vida e, tanto mais, sobre o pós-vida de dois orgulhos que a brisa do Brasil não mais balança, e muito menos beija. “A Vida Futura” (Companhia das Letras) do jornalista Sérgio Rodrigues, tem a pretensão de interromper o sono eterno de ninguém menos que Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) e José Martiniano de Alencar (1829-1877), dois dos grandes conhecedores do vernáculo deste chão descoberto por Cabral, além, por evidente, de contadores de histórias de talento incomparável. Em “A Vida Futura”, Rodrigues compõe uma análise bem a seu estilo, acerba, contundente, precisa, sobre o “novo português” que se passou a falar no Brasil desde que vieram à baila pautas urgentes e justas como o tratamento mais digno a pessoas não binárias, aquelas que não se identificam como de um gênero em específico. Filólogo amador (e dos bons), o autor chama a atenção para o problema da tal linguagem neutra, perigosa justamente por reforçar preconceitos. “A Vida Futura” e outras quatro publicações brasileiras constam da nossa lista com os romances aos quais você deve se lançar em 2023, ou se lançar de novo. Os textos das sinopses foram fornecidos pelas respectivas editoras, adaptados e acrescidos de nossa visão sobre as obras. Leia (ou releia) todos e diga-nos o que achou.
A pena inigualável de Sérgio Rodrigues faz José de Alencar e Machado de Assis reviverem neste louco século 21 em A Vida Futura (Companhia das Letras), romance único, erudito e inventivo. Ao saber que seus livros seriam reescritos para alcançar mais leitores, os finados José de Alencar e Joaquim Maria Machado de Assis abandonam o Olimpo e desembarcam no Rio de Janeiro de 2020. Ali, Jota e Jota — um de José, outro de Joaquim — metem-se com milicianos, conhecem uma jovem estudante tão enigmática quanto sedutora e flagram-se às voltas com os polêmicos (e muitas vezes risíveis) debates identitários contemporâneos, como a eminente obrigatoriedade do uso dos famigerados pronomes neutros. Sobre o livro escreveu Ana Maria Machado: “Saio deliciada da leitura de A vida futura, transportada pela linguagem a algum lugar muito especial — que é nosso de direito, mas poucas vezes temos a oportunidade de visitar. Uma jogada de craque; na torcida, autores e leitores de nossa língua agradecem”.
O catarinense Cristovão Tezza explica “Beatriz e o Poeta” (Todavia), seu novo romance, como uma resposta à tragédia da pandemia de covid-19 e à boçalidade truculenta da política, de Trump a Bolsonaro, mas frisa que o livro não tem propriamente um compromisso com a facticidade, tampouco com previsões do que será da democracia em tempos de insânia tão assumida e burrice tão autoglorificada. No que concerne à peste mais objetivamente, Tezza, famoso pelo excelente “O Filho Eterno” (2007), reminiscências de seu convívio familiar com a síndrome de Down, defende que o assunto “contaminou” o debate sobre tudo, mas argumenta que uma de suas funções como artista é vencer o óbvio, o fácil e o choque que esses temas sensíveis para quase todo mundo provoca e propor um novo jeito de se lidar com a nova dura realidade. É o que se lê no aprazível transcurso de 192 páginas, em que o escritor apresenta os personagens-título, Beatriz e Gabriel, como cidadãos, mas antes como gente comum, sujeita a apetites da carne e do espírito, inconveniências, fraquezas, em prosa a um só tempo leve e contundente.
Andréa Del Fuego, 47 anos, codinome de Andréa Fátima dos Santos, segue com suas elucubrações deliciosamente sarcásticas e inescapavelmente verdadeiras sobre a infância, porém sente-se segura o bastante para acrescer a sua obra outros elementos que, de uma forma ou de outra, terminam por remeter o leitor aos verdes anos de experimentações, traumas e sentimentos gorados. “Os Malaquias” (2010), o romance que antecedeu outras duas publicações de narrativas longas, “As Miniaturas” (2013) e o engraçado e perturbador “A Pediatra” (2021), os três pela Companhia das Letras — trata de família, infelicidade em família, vida, fim da vida, lembranças, modalidades heterodoxas de amor e a quase impossível humanidade a ligar-nos os oito bilhões de terráqueos como se por um fio muito delicado e muito forte a um só tempo. Com a morte dos pais, Antônio, Júlia e Nico são despachados cada qual para um destino, e tomando por premissa o que o existir faz desses irmãos, a autora elabora saídas fascinantemente originais que evocam o realismo mágico e a poesia a mais áspera, justificando com folga e mérito a vitória na sétima edição do Prêmio Literário José Saramago, em 2011.
A trajetória do niteroiense Sérgio Tavares é mais um caso de transição bem-sucedida do jornalismo para a literatura. Em 2004, Tavares começou a firmar-se na nova atividade ao vencer o Concurso Literário da Fundação Escola do Serviço Público com o conto “O Escritor de Obituários” (Fesp). Seis anos depois, em 2010, o primeiro lugar no Prêmio Sesc de Literatura com “Cavala” (Record), seu livro de estreia, na categoria Conto, deu-lhe a certeza de que estava mesmo indo bem. A publicação também possibilitou ao autor chegar à final do 2º Prêmio Brasília de Literatura. As histórias de “Queda da Própria Altura” (Confraria do Vento), de 2012, preparou o terreno para a estreia em narrativas longas, e em “Todos Nós Estaremos Bem” (Dublinense), o agora romancista amalgama os anos de chumbo da ditadura militar brasileira ao longo das décadas de 1960 e 1970, perversões sexuais e a busca por liberdade de uma geração agrilhoada em preconceitos e a ilusão de ser moderna.
A pandemia de covid-19 foi mesmo um grande baque para nós, vulneráveis seres humanos cada vez mais perdidos num mundo em que não nos reconhecemos e que não nos tem nenhum apreço. Em “Transistória: Uma Ficção Científica para Tempos de Pandemia”, Nelson Moraes Alves parte de um argumento flagrantemente genérico na intenção de salientar o delírio coletivo e a narrativa distópica sob a forma de um policial federal que diz ter descoberto um plano para levar terráqueos do século 21 para outras eras e, quiçá, outros mundos a fim de dar um basta no esplim que consome pobres e ricos, velhos e jovens, pretos, brancos e vermelhos em Europa, França e Bahia. Helena Sattel, uma professora de física aplicada, corrobora a versão do agente, alegando ser mesmo possível a viagem no tempo, mas o que Helena não diz é que seu filho Tony, um empresário dado a maracutaias para faturar alto, é o responsável por Transistória, o nome comercial da experiência. Alves se sai no árido gênero da ficção científica — sobretudo literária, e no Brasil! —, juntando ao corpo da narrativa elementos da nossa História, a exemplo de um D. João 6° quase tão malandro quanto Tony, que vira conselheiro de Sua Majestade.