Quando homens dignos começam a se questionar sobre se sua boa alma os encarcera numa vida limitada demais, seu caráter à prova de qualquer reproche os condena a uma existência cujos horizontes apoucam-se dia a dia, sua sinceridade, franqueza, boas intenções, humanidade são tomadas ou por uma inocência que remonta a falta de ambição ou autossabotagem ou, ainda pior, um expediente meio nebuloso para atingir objetivos inconfessáveis, desponta da bruma macabra desse nosso novo tempo mais uma evidência de que retrocedemos muito mais que avançamos. Os graves celestiais de Luciano Pavarotti (1935-2007) em “Una Furtiva Lacrima”, a ária mais famosa de “L’Elisir d’Amore, a ópera de Gaetano Donizetti (1797-1848), foi o jeito encontrado pelo alemão Cüneyt Kaya para imprimir classe e graça a “Altos Negócios”, a tragicomédia em que junta ganância, a vontade de se dar bem a qualquer preço, a falsa necessidade de conquistar o mundo, a real grandeza das coisas invisíveis.
A uma análise mais precipitada, o roteiro de Kaya pode ser tomado por uma adaptação muito mais breve — e muito menos glamorosa — de “O Lobo de Wall Street” (2013), a ópera bufa de Martin Scorsese sobre os predadores do mercado financeiro americano, originalmente apresentada por Oliver Stone em “Wall Street — Poder e Cobiça” (1987), mas outra soberba criação da indústria cinematográfica de Hollywood também entra nesse bolo, em proporções ainda mais generosas, diga-se, ainda só detectáveis ao cabo de alguma reflexão. As pegadas do Steven Spielberg de “Prenda-me se For Capaz” (2002), o sofisticado drama de família que também gira em torno do vil metal, seus encantos, seus logros e as bizarrices que muita gente faz para ganhá-lo e a labuta que a maior parte empreendemos para merecê-lo, vão se sucedendo numa trama decerto pouco inventiva, mas que capta a seu modo o espírito de um tempo em que os valores não se inverteram, definitivamente não se trata disso, só ficaram menos subjetivos e mais cínicos.
Viktor Steiner, o tipo duvidoso encarnado por David Kross, aprendeu com o pai, Peter, outro malandro, que “com um sorriso você conquista o mundo”, e como sorriso ele tem para dar e vender, acreditou. Flashbacks que vão e vêm na narrativa, sobretudo no primeiro ato, mostram-no a ajudar o pai em pequenos golpes, como o Frank Abagnale, Jr. de Leonardo DiCaprio no filme de Scorsese, primeiro por força das circunstâncias, depois por gosto mesmo. Um corte seco coloca o protagonista numa sala de paredes cor de chumbo, diante de Luna, a investigadora vivida por Anne Schafer, que tenta entender como o modo como Viktor e o parceiro, Gerry, de Frederick Lau, operavam, que se revela de fato bastante engenhoso, mesmo para a polícia e para a Receita. Kaya desenvolve por aí o conflito principal de seu filme, tendo sempre por retaguarda as subtramas em que o anti-herói de Kross aparece cada vez mais autoconfiante, cada vez mais poderoso, pulando de vigarices baratas como dispor para aluguel coberturas que não lhe pertencem para a fundação de bancos (!) no arquipélago de Malta, entre a Sicília e a costa do Norte da África. Nesse segmento, “Altos Negócios” volta a se parecer mais com “O Lobo de Wall Street”, até porque por mais bisonhos que sejam seus métodos, como inventar um currículo em que se apresenta como um tal Dirk Diggler — piada que só determinado público metaboliza de imediato, tanto que demanda explicação —, programador de aplicativos com salário de quase vinte mil euros, há sempre uma segunda e uma terceira carta na manga, que nunca saca senão no momento oportuno e, por assim, quebra a banca.
Kaya utiliza-se de um MacGuffin para dar a sensação de que todo o sofrimento de Viktor, sua indigência espiritual, sua penúria moral, suas perdas irreparáveis valeram a pena, e, claro, o mundo está cheio de feras que partilham desse conceito. Sem dúvida, a melhor coisa em filmes como “Altos Negócios” é certeza que uns poucos temos de que demos a César sua prata e empenhamos o ouro no que mais importa. Cada vive como prefere, e como sabe.
Filme: Altos Negócios
Direção: Cüneyt Kaya
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10