Li “Gente Pobre”, de Fiódor Dostoiévski, e gostei. Na verdade, não há como não gostar. O primeiro livro do grande escritor russo trata de cartas trocadas entre dois moradores de São Petersburgo, que vivem próximos e na mais lastimável miséria. Por ser pobres, são assolados por questões íntimas e sentimentos contrastantes. A luta constante das personagens é por dignidade. Nisso constitui as confissões literárias que fazem Makar Diévuchkin e Varvara Dobrosiólova durante o curto período em que se correspondem.
“Gente Pobre” pode ser dividido, de forma simplista, em três ideias. A primeira, mas não a mais interessante, é a crítica à sociedade russa da década de 1840 com suas diferenças de classes discrepantes, trabalhos humilhantes, miséria e mendigagem. A segunda, a relação amorosa e nunca efetivamente consumada, e ambígua em certo sentido, das duas personagens principais, que é revelada por meio dos textos abertos e sinceros que um dedica ao outro. A terceira, e mais importante, é a crítica literária que Dostoiévski faz, usando a voz de Makar, sobre a literatura russa, sobretudo a dos escritores Aleksandr Puchkin, quem ele, explicitamente reverencia, e Nikolai Gógol, um influenciador.
Como é comum na Literatura de Dostoiévski aqui pode-se encontrar, em estado germinal, o estudo dos humanos, a exploração do comportamento, a análise psicológica por meio das personagens. Makar é um indivíduo curioso, mas carrega a aura dos homens sem importância, dos supérfluos, caros à Gógol e Turguêniev. Como ele mesmo diz: “eu me acostumei, porque me acostumo com tudo, porque sou um homem pacífico, porque sou um homem sem importância”. Tudo isso como pano de fundo para uma análise da Literatura em amplos sentidos.
Makar é simples. Define a si mesmo como bronco. Diz não ter estilo. Mas “Gente Pobre” é um clássico. Uma obra estudada e avaliada por milhares de estudiosos da Literatura. Mesmo assim, Dostoiévski, utiliza de um ignorante para falar sobre temas de extrema complexidade, por exemplo, o motivo da sua insatisfação com o conto “O capote”, de Gógol. Pela dicção de Makar — o que parece incoerente—, o escritor sugere “consertar” o conto citado. Por outro lado, as cartas de Makar são pérolas literárias natas. E ainda assim, a personagem evolui, apresentando um estilo de escrita melhorado a cada página. O que sugere que a elaboração pensada e a destreza adquirida com a insistência podem levar o escritor à excelência.
“Gente Pobre” é um clássico, indiscutível. Mas seus personagens estão no limiar da catástrofe. Ainda assim elaboram conceitos e vivenciam dilemas que encontram na Literatura de sua época. Para que fiquem juntos, se é que podem, têm que descartar uma das ideias mais impactantes deste livro excepcional, que é: “os pobres e os desgraçados devem se afastar uns dos outros”.
Livro: Gente Pobre
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Fátima Bianchi
Páginas: 183 páginas
Editora: Editora 34
Nota: 9/10