Eu podia estar roubando, mas, estou apenas escrevendo poesia

Eu podia estar roubando, mas, estou apenas escrevendo poesia

Mastigo tão poucas vezes. Engulo os alimentos tão precipitadamente. Na autoridade dos seus 85 anos, mamãe, que anda devagar porque já andou depressa, pergunta que pressa é essa, meu filho. Ela adora ouvir Almir Sater. Amo a sua frágil meiguice. Tem Rivotril de sobra no colo dela, dentre outras redundâncias de bem-querer. Nunca me disse com a boca, filho eu te amo. Nem precisava. Calado, leio o que os vincos da sua pele apergaminhada têm a dizer. São puro encanto os encantos de se amar. Sinto saudades do mar, do medo de me afogar nele. Deviam servir mais poesia no café da manhã. Reflito. Então, saio. Dirijo aflito pelas rugas da cidade. Enxergo outros neuróticos a ocupar volantes com seus dedos anulares em riste pela janela do carro. Escarro sobre o asfalto quente e o cuspe logo arde e se transforma em nuvem. Parte de mim evapora de vertigem. Agora, as vias sinápticas dos miolos estão por demais congestionadas, intransitáveis e nenhuma célula viva me empresta o seu alento em espetáculos de malabares. Os bares estão prestes a reabrir. Os corações da clientela pulsam fechados e sós. Garçons com talento inato para equilibrar tulipas sobre uma bandeja esparramam mesas e cadeiras no passeio público. É notório que um chope com colarinho alto cairia bem na garganta. Não adianta: baixam em mim os aplicativos do banzo. Transo com os olhos de uma motorista alucinada que para o carro sobre a faixa dos pedestres. Penso na gravura rupestre que desenharia na sua caverna aquiescente usando uma clava sólida candente. Tudo rima com dor, com exceção do amor. O semáforo abre. A desconhecida fecha o cenho e acelera até dobrar a esquina do pensamento. Tentar eu até tento, mas, existe um certo descontentamento em sempre encontrar um pouco mais de mim em tudo quanto é lado. Síndrome do pensamento acelerado, pânico, ansiedade ou mero amortecimento dos cinco órgãos do sentido? Se vocês não sabem, imaginem-me. Se existe algo de errado dentro desse vazio contexto suburbano, deve pertencer à esfera psíquica desse homem quadrado e errático com esgares inumanos. Faz anos que, nas últimas vinte e quatro horas, pensei como se fossem setenta e duas. Você tem razão, mãe. Eu engulo rápido demais a comida. E trepo de olho no relógio. E dirijo acelerado. E derrapo nas curvas de ideias promissoras. Passado tudo isso, um pouco mais de presente sobrevoa o meu corpo, prestes a devorá-lo. Terá sido cedo demais, pois, tarde de menos, a noite, por mais que se condoa, passará como um sopro, um sopro que assopro no ouvido mouco da morte, enquanto ela mastiga homens na velocidade regulamentar permitida nas estradas da vida. Ninguém mais duvida que nada é eterno. Nem a obra medíocre de um senil imortal da academia, nem o morto-de-fome que desmaia na calçada de um bar durante a happy hour, afetado pelo porre, pela abstinência ou pela anemia. Eu podia estar roubando, mas, estou apenas escrevendo poesia.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.